sábado, 7 de outubro de 2023

O peixe de Neruda





 Ivo Barroso


Neruda pôs um peixe na bandeira

que desfraldava em frente à sua casa.

Talvez quisesse assim, desta maneira,

dizer que um peixe voa sem ter asa.


Dizer que nós podemos transformar

As coisas pela força da vontade:

Que o mar pode ser céu, o céu ser mar,

Dependendo do olhar, da intensidade.


Talvez quisesse nos dizer que a vida

É o exercício de enganar a morte;

Que depende de nós uma saída,

Parar os dados, reverter a sorte.


Que toda coisa é muito mais que a coisa

em si; que um nome pode ser trocado:

tudo consiste em ser a mariposa

que se transforma num milagre alado.


Assim, pensando bem, o que Neruda

buscou simbolizar com o peixe erguido

na flâmula, que agora se transmuda

em onda do mar, tem múltiplo sentido:


Antes do mais, é a pura imagem física

do peixe, o seu desenho, o seu traçado

geométrico, a linha elíptica, a risca,

o contorno preciso e elaborado;


a exatidão de meios, essa técnica

biológica que o torna a parte viva

da água em que ele vive, a chispa elétrica

que intensa o move, orienta, compulsiva.


O peixe de Neruda é mais que um peixe,

é uma bandeira, é mais que uma bandeira,

um conjunto de símbolos, um feixe

de acepções - a mitologia inteira.


É um peixe apostólico, sem dúvida,

a ser multiplicado quando há bodas;

mas é também um peixe só e único,

quando se forem as esperanças todas.


Pois é o peixe de Cristo e do infinito,

esse oito deitado e em si completo,

oracular, sinal na areia escrito,

signo zodiacal, moto perpétuo.


Por isso penso às vezes que Neruda

ao erguer de manhã aquele mastro,

com voz potente e ao mesmo tempo muda,

dizia versos ao seu peixe-astro:


‘Acorda, ó peixe inaugural, ó peixe matutino

Longe de teu reduto aquático, nos ares;

Deixa a esponja, o coral, o caramujo

— Teus amigos agora são as aves.

Deixa o reduto de imersões profundas,

Liberta-te de abraços isobáricos

E paira livre de teu peso em vôo silencioso e estático;

Nada nesse ondulante pavilhão que o vento do mar fustiga.

És agora o peixe em estado virtual, o peixe-pensamento, espadanando

A esbranquiçada metamorfose das escamas.

A ti entrego o destino de uma espécie

Marítima e volátil, a dupla vida

Que intentamos viver sem os recursos

Que ora te empresto da imaginação.

A ti confio o destino de todos estes seres

Que querem ser bem mais do que têm sido.

Mas que lhes falta o anseio de ter asas

Ou temem sempre mergulhar no abismo’.


E tarde, tendo os olhos seus imersos

no pôr-do-sol, descendo o pavilhão,

talvez Neruda lhe dissesse versos

— que o verso de Neruda é uma oração:


‘Volta, ó peixe vesperal, mergulhador do ocaso,

Ao seio original de onde saíste, entre líquenes e anêmonas;

Conta às algas o azul do céu quando os stratus

coroam as colinas,

Agora sabes os segredos dos que pairam acima do horizonte,

Mas dize-lhes também que aventura inaudita

É viver em dois mundos, é saber que estás aqui

Mas que podes pairar além do insuspeitado.


Sonda teu elemento com perícia mas denodo,

Não deixes o recôndito esquecido,

Nele há tesouros que ainda não fulguram

Por lhes faltarem olhos que os vejam.


Vai mais fundo, explora os teus recursos mais íntimos,

A força potencial que jaz nestas escamas

Que tatalaram como virgens rêmiges,

Um dia nas alturas.

Usa teus olhos oblíquos para veres na sombra

O que muitos não vêem em pleno dia,

Sê tu mesmo, sabendo bem que podes

Ser outro, muitos mais, ser legião, miríade

Sem trair o que de mais teu trazes contigo.

Amanhã, serás outro meu amigo.’


E ouvindo o Poeta descobri que havia

Algo de mais recôndito na imagem:

Além de toda essa mitologia,

Há no peixe uma última mensagem.


A de que é a Poesia um peixe-alado

E o Poeta um ser que busca o vir-a-ser.

Vive para dar vida ao Incriado,

Que a missão do Poeta é transcender.

 

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