Você me leva até aquela pedra outra vez. Diz que é sobre ela que ergueremos nossa casa, nosso refúgio e nosso abrigo. Olho para baixo e vejo o mundo lá longe, pensando que seria mesmo muito bom subir ali algumas paredes, me isolar dentro delas, e, protegida de todas as dores da vida, pegar uma taça de vinho, acender a lareira e deitar no seu colo. Aperto um pouco mais sua mão, sento na pedra e começo a sonhar.
Como todo bom sonho, esse sonho não tem começo nem fim, apenas meio. Tudo é meio até que se acabe, essa é a verdade. Outra enorme verdade é que não sei como começaremos a pagar pela casa, nem sei quando terminaremos de erguê-la, mas as paredes já estão subindo dentro de minha imaginação.
Andando pelo terreno que você comprou no topo do mundo – embora ao seu lado todo terreno percorrido seja o topo do mundo – vamos falando a respeito da casa que construiremos – sala, cozinha, quartos, banheiros, deck... tudo vai ganhando vida.
Você diz que quer um aconchegante escritoriozinho para que eu trabalhe em paz e com vista para o oceano de montanhas a nossa frente. Eu digo que quero uma cozinha no meio de tudo e onde eu possa fazer aquele macarrão alho e óleo que minha mãe me ensinou e no qual você se lambuza com o prazer dos esfomeados pela vida – sua intensidade nunca vai deixar de me surpreender.
Construir uma casa é como plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho – deveria fazer parte da lista de coisas fundamentais da vida. Como provavelmente não teremos um filho, podemos substituir a última pela casa, penso.
E, quando fico tentada a colocar no papel nosso orçamento anual, atitude que me faria despertar do sonho empapada em suor, lembro de seu Juca, cujo avô ergueu a dele com a ajuda de amigos, usando apenas barro e madeira. Tud o vale a pena se a alma não é pequena; meu pai adorava citar Pessoa. E usar ponto e vírgula. Só agora, depois dos 40, o poeta começa a fazer sentido. O ponto e vírgula fez bem antes.
Horizonte
Você enfia a mão no meu cabelo e bagunça todos os fios, como faz desde a primeira noite em que ficamos juntas. Feito um gato, eu me ofereço esticando o pescoço e ronronando enquanto continuamos a andar – e a sonhar – pelo mato.
Talvez o único antídoto para esta dolorida jornada humana sejam os sonhos – sem eles não levaríamos à boca uma xícara de café pela manhã e não desceríamos um lance de escada. O sonho é a pele da alma dos apaixonados.
Enquanto me entrego ao devaneio que só a mistura de vinho e frio permite, você continua falando a respeito da casa. Está agora colocando os batentes e as esquadrias, aparentes e de madeira. Tem ainda uma pequena adega, muito vidro e uma bancada onde eu vou poder co rtar os tomatinhos do macarrão alho e óleo e, ao mesmo tempo, ver você lendo na sala. Tem os cachorros lá fora e aqui dentro, embora eu continue a reclamar das patas sujas no sofá e você continue a me ignorar dando ampla preferência à vontade dos cachorros.
Em menos de duas horas ela fica pronta, a nossa casa no mato – e eu entendo que melhor do que sonhar é sonhar junto. Fico pensando que um amor morto é aquele que não sonha mais junto.
Você volta a sentar na pedra e eu agora vejo você inserida no horizonte de montanhas ao fundo, tudo parte de uma mesma substância, que é o que somos, que é o que temos que ser. Quero fotografar, mas minhas mãos, no bolso do casaco, estão congeladas: subjetivamente, pela beleza daquele momento; objetivamente, pelo frio.
Eu estava dormindo a primeira vez que sonhei com uma casa com vista para o infinito. No sonho, eu tinha uns 60 anos e tomava uma xícara de café olhando pela janela. Sei qu e fazia frio porque eu usava um casaco branco de lã e gola alta. Atrás de mim, uma escrivaninha com muitos livros e uma máquina de escrever. A imagem veio como em uma fotografia superexposta: as cores eram fortes e vivas. Eu tinha menos de 20 anos e nenhuma perspectiva de virar escritora ou de conhecer um amor tão intenso.
A vida fazendo sentido
E agora tudo está ali comigo: o sonho mais belo que já sonhei querendo acontecer, você – um sonho tão espetacularmente absurdo que nem sonhado tinha sido – e aquele monte de picos e vales, os altos e baixos da experiência humana.
Mais uma vez, você coloca a mão em meu cabelo e começa a despenteá-lo. Mais uma vez, feito um gato, eu me entrego e coloco a cabeça em seu colo. A vida vai fazendo sentido.
Amanhã é segunda-feira e o mundo vai tentar ofuscar todos os sonhos – telefonemas fora de hora, contas bloqueadas, o processo do empresário safado e esperto que cai sobre seus ombros, a grana que não vai dar para pagar tudo, o portão da garagem que quebra, a obra do vizinho, o ralo que entope.
O grande truque é não deixar o mundo entrar. O grande truque é erguer paredes sólidas – mesmo que sejam de barro –, fechar a porta, acender a lareira, pegar uma taça de vinho e continuar olhando para o horizonte de montanhas. O grande truque é jamais perder o sonho de vista, nem mesmo o mais maluco deles, porque, no fim, é ele que nos terá elevado a um lugar onde tudo fará sentido.
Como todo bom sonho, esse sonho não tem começo nem fim, apenas meio. Tudo é meio até que se acabe, essa é a verdade. Outra enorme verdade é que não sei como começaremos a pagar pela casa, nem sei quando terminaremos de erguê-la, mas as paredes já estão subindo dentro de minha imaginação.
Andando pelo terreno que você comprou no topo do mundo – embora ao seu lado todo terreno percorrido seja o topo do mundo – vamos falando a respeito da casa que construiremos – sala, cozinha, quartos, banheiros, deck... tudo vai ganhando vida.
Você diz que quer um aconchegante escritoriozinho para que eu trabalhe em paz e com vista para o oceano de montanhas a nossa frente. Eu digo que quero uma cozinha no meio de tudo e onde eu possa fazer aquele macarrão alho e óleo que minha mãe me ensinou e no qual você se lambuza com o prazer dos esfomeados pela vida – sua intensidade nunca vai deixar de me surpreender.
Construir uma casa é como plantar uma árvore, escrever um livro e ter um filho – deveria fazer parte da lista de coisas fundamentais da vida. Como provavelmente não teremos um filho, podemos substituir a última pela casa, penso.
E, quando fico tentada a colocar no papel nosso orçamento anual, atitude que me faria despertar do sonho empapada em suor, lembro de seu Juca, cujo avô ergueu a dele com a ajuda de amigos, usando apenas barro e madeira. Tud o vale a pena se a alma não é pequena; meu pai adorava citar Pessoa. E usar ponto e vírgula. Só agora, depois dos 40, o poeta começa a fazer sentido. O ponto e vírgula fez bem antes.
Horizonte
Você enfia a mão no meu cabelo e bagunça todos os fios, como faz desde a primeira noite em que ficamos juntas. Feito um gato, eu me ofereço esticando o pescoço e ronronando enquanto continuamos a andar – e a sonhar – pelo mato.
Talvez o único antídoto para esta dolorida jornada humana sejam os sonhos – sem eles não levaríamos à boca uma xícara de café pela manhã e não desceríamos um lance de escada. O sonho é a pele da alma dos apaixonados.
Enquanto me entrego ao devaneio que só a mistura de vinho e frio permite, você continua falando a respeito da casa. Está agora colocando os batentes e as esquadrias, aparentes e de madeira. Tem ainda uma pequena adega, muito vidro e uma bancada onde eu vou poder co rtar os tomatinhos do macarrão alho e óleo e, ao mesmo tempo, ver você lendo na sala. Tem os cachorros lá fora e aqui dentro, embora eu continue a reclamar das patas sujas no sofá e você continue a me ignorar dando ampla preferência à vontade dos cachorros.
Em menos de duas horas ela fica pronta, a nossa casa no mato – e eu entendo que melhor do que sonhar é sonhar junto. Fico pensando que um amor morto é aquele que não sonha mais junto.
Você volta a sentar na pedra e eu agora vejo você inserida no horizonte de montanhas ao fundo, tudo parte de uma mesma substância, que é o que somos, que é o que temos que ser. Quero fotografar, mas minhas mãos, no bolso do casaco, estão congeladas: subjetivamente, pela beleza daquele momento; objetivamente, pelo frio.
Eu estava dormindo a primeira vez que sonhei com uma casa com vista para o infinito. No sonho, eu tinha uns 60 anos e tomava uma xícara de café olhando pela janela. Sei qu e fazia frio porque eu usava um casaco branco de lã e gola alta. Atrás de mim, uma escrivaninha com muitos livros e uma máquina de escrever. A imagem veio como em uma fotografia superexposta: as cores eram fortes e vivas. Eu tinha menos de 20 anos e nenhuma perspectiva de virar escritora ou de conhecer um amor tão intenso.
A vida fazendo sentido
E agora tudo está ali comigo: o sonho mais belo que já sonhei querendo acontecer, você – um sonho tão espetacularmente absurdo que nem sonhado tinha sido – e aquele monte de picos e vales, os altos e baixos da experiência humana.
Mais uma vez, você coloca a mão em meu cabelo e começa a despenteá-lo. Mais uma vez, feito um gato, eu me entrego e coloco a cabeça em seu colo. A vida vai fazendo sentido.
Amanhã é segunda-feira e o mundo vai tentar ofuscar todos os sonhos – telefonemas fora de hora, contas bloqueadas, o processo do empresário safado e esperto que cai sobre seus ombros, a grana que não vai dar para pagar tudo, o portão da garagem que quebra, a obra do vizinho, o ralo que entope.
O grande truque é não deixar o mundo entrar. O grande truque é erguer paredes sólidas – mesmo que sejam de barro –, fechar a porta, acender a lareira, pegar uma taça de vinho e continuar olhando para o horizonte de montanhas. O grande truque é jamais perder o sonho de vista, nem mesmo o mais maluco deles, porque, no fim, é ele que nos terá elevado a um lugar onde tudo fará sentido.
A carioca Milly Lacombe, 43 anos, é jornalista. Seu e-mail: millylacombe@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário