Jairo Vianna
Eu queria saber o significado do vocábulo rocas, afora o conhecido mecanismo de tear. Ouvi certo dia de um marinheiro que assim se chama o reforço para mastros e vergas rendidas de veleiros. Nada mais apropriado para nome de Zona Boêmia, pensei. E assim se chama, até hoje, aquela de Natal. Foi lá que conheci Isaura, nos idos de 1951. Eu acabava de sair do seminário. Já não havia mais a base aérea norte-americana, mas restava alguma sombra de fartura nos cabarés. Por coincidência, fui levado ao bordel por um primo soldado da Força Aérea brasileira. Ele fez questão de me levar e o fazia como se fosse um ato de heroísmo. Eu nem em retrato tinha visto mulher nua e entrei no lugar de través. Senti um misto de curiosidade e medo. O ambiente, inverso da minha casa e da escola eclesiástica, deu-me vontade de voltar. Desisti do retrocesso, diante do olhar ríspido do primo. Entramos. Ele escolheu uma das mesas e nos acomodamos. A bruma de tabaco quase impedia que eu visse os que dançavam e as toalhas xadrezes das mesas vizinhas. O cheiro agridoce invadia o salão. Ria-se muito. Homens estranhos limpavam a espuma sobrada da cerveja nos vastos bigodes. Pensei na terrível peleja que haveria, se resolvessem emendá-los. Assim se dizia: brigar era emendar bigode. Invejei-os — queria ter um daqueles. Havia mesmo decidido e já colecionava os primeiros pelos: um sombreado de buço sedoso. Nada em que a espuma colasse e que eu pudesse assear com a mão. Senti-me pueril e pensei em correr aos braços maternos da proteção. Aquietou-me de novo o fuzilamento dos olhos do primo. Com um sinal, ele ordenou que duas mulheres se sentassem nas cadeiras vazias da mesa: ao seu lado a branca, talvez polaca; e ao meu a morena, Isaura. Ele se atracou com a outra. Eu escondi as mãos entre as pernas e rocei o sexo flácido e sumido de susto. Fitei os lábios carnudos e escarlates de Isaura. Eles se abriram vagarosamente e ela disse:
— É tua primeira vez, meu lindo?
— É sim — falei, não sem antes pensar em mentir e fingir experiência.
O primo disse-lhe algo ao ouvido e se foi com a outra.
Tomei um gole da cerveja e achei amarga. Duvidei que algum dia fosse gostar de beber aquilo. Mesmo assim, tentei levar o copo à boca de novo, porém minhas mãos trêmulas impediram. Isaura percebeu. Tomou-me uma das mãos entre as suas e nela depositou um beijo. Senti calafrio. Meus olhos fixos nos seios de Isaura viram o vale do meio e o crucifixo pendente da corrente. Recordei os castigos dos colegas que se masturbavam: horas de rezas sobre os caroços de milho. No dia seguinte, mostravam os joelhos machucados. No fundo, regozijavam-se com rebeldia e a macheza. Eu preferia o medo e a preservação. E Isaura me fez levantar e me levou através da cortina feita de cordas e contas. Ao balanço causado pela nossa passagem, algumas moscas voaram, para depois retornarem àquele berço em busca do sono. Assim ultrapassei a fronteira da vida adulta. Ao lado da mulher, minha pequenez. Ela não devia ser dali, porquanto era alta, embora morena e de sotaque nordestino. Talvez fosse das bandas de Pernambuco. Lá as mulheres eram compridas como o nome do lugar, diziam.
Entramos no quarto. Num canto, a penteadeira com frascos de perfumes, potes de pinturas, uma Nossa Senhora, pentes, escovas e um retrato de cachorro. Ao lado a cama, forrada de pano estampado, e a pequena mesa. O cheiro agridoce se acentuava. Ela franziu a testa e esboçou um sorriso.
— Fique aí um pouco, lindinho. Não se aperreie. Logo tu vai ver o que é bom.
Isaura das Rocas sumiu porta afora. Eu fiquei de olhos fixos na Nossa Senhora da penteadeira. Resolvi fechá-los e abrir a imaginação. Tinha nas mãos o calor do beijo e no peito o amor nascente. E me vi enroscado nela aos mimos e sussurros. Mil vezes lhe jurei amor e ela respondia com a candura do olhar.
Senti a excitação e o suor. Tirei a roupa. Continuei de olhos cerrados, temendo não vê-la mais. Talvez tudo, inclusive o primo, fosse fantasia e eu estivesse no dormitório no seminário.
O ranger da porta me trouxe de volta à realidade. Enxerguei Isaura e seu sorriso morno. Ela tirava a roupa. Pude ver o sinal perto do umbigo e os seios agora inteiros, com a cruz indo e vindo enquanto ela se abaixava para se livrar do resto das roupas. As unhas dos pés de Isaura pareciam sangrar, de tão rubras. Ela se aproximou da cama e carinhosamente me empurrou de lado. Abraçou-me. Minha cabeça em seu colo. Eu me embriaguei no seu perfume. A excitação tanta se esvaiu no lençol de tantas flores e folhas e se acrescentou à estamparia. Ela não se importou. Embalou-me nos braços e peitos. Novamente pronto, e mais calmo, deixei-me conduzir e amei. Não amor sinônimo malcriado de sexo. Amor mesmo, de sentir no fundo, de dentro para fora e vice-versa. Isaura dizia coisas que não pude compreender, enquanto se enroscava cavalgando. Eu, inanimado e feliz, experimentava fluxo e refluxo. Por fim, ela descansou. Virou de costas. Encostei-me nas suas ancas e adormeci, certo de amor. O primo apareceu com o dinheiro para Isaura, ela não aceitou e falou do prazer. Amava-me, com certeza, e não me deixaria mais. E eu era o mais feliz dos homens, embora ainda me faltassem bigode e o gosto pela cerveja.
Bateram à porta. Levantamos, eu e ela de um só pulo. Era o primo. Isaura começou a se vestir e mandou que eu fizesse o mesmo. Indagava-me se aquilo não teria acontecido ainda agora, de forma diferente. A memória trôpega me confundia. O primo deu o dinheiro para Isaura e me levou quase empurrado dali. Eu transtornado com o vai-e-vem do sonho e da realidade.
Depois, por bom tempo, pensei na Isaura. Nas noites, rondei as Rocas. Não tive coragem de entrar e vê-la na lida, com outro homem. Acreditei que um dia ela sairia do cabaré, viria ao meu encontro, abandonaria a vida e cuidaria do nosso amor. Do primo fiquei sem notícia nem queria alguma. Preferi ficar para sempre com o sonho. A versão boa. Aprendizagem de amor.
Até hoje me lembro de Isaura das Rocas. Mulher capaz de curar mastros e vergas da rendidura. Apta para inflar as velas dos barcos, de modo a lhes assegurar boas viagens nos mares do futuro e nas lembranças do passado.
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