Enquanto ele falava, um Fariseu pediu-lhe que jantasse em sua casa; e
Jesus, para lá se dirigindo, colocou-se à mesa. O Fariseu começou então a dizer
para si mesmo: Por que não lavou as mãos antes do jantar? Mas o Senhor lhe
disse: Vós outros, Fariseus, tendes grande cuidado em limpar o exterior do copo
e do prato; mas o interior de vossos corações está cheio de rapinas e de
iniquidades. Insensatos que sois! Aquele que fez o exterior não fez também o
interior? (São Lucas, cap. XI, v. 37 a 40).
(...) Não basta, pois, ter as aparências da pureza, é preciso, antes de
tudo, ter a pureza do coração. (O Evangelho Segundo o Espiritismo, cap. VIII,
10).
COMO VAMOS NÓS?
Diariamente, utilizamos inúmeras
máscaras diferentes para nos alinharmos às exigências sociais às quais o nosso
cotidiano nos obriga. No trabalho, na escola, nos cursos... Sempre que há gente
observando, somos graciosos, sorridentes, gentis e polidos.
Somos excelentes seres humanos!
Nada de errado com isso, afinal a
repetição de um comportamento é que faz o hábito e, se é para nos tornarmos
mais tolerantes e toleráveis, além de mais agradáveis em nossas relações
interpessoais, não há dúvida de que essa encenação tem algo de positivo. Isto
porque, em algum momento, ela fará parte de nós como algo automático, assim
como aconteceu em nosso processo de educação, em que tivemos que aprender,
por exemplo, a dizer “bom dia” para os outros, até que nos tornássemos capazes
de fazê-lo mecanicamente, como robôs bem programados.
A questão, no entanto, é mais profunda.
Quando dizemos bom dia para alguém, estamos, dentro de nós, desejando
um bom dia para aquela pessoa? Quanto há de sinceridade nesse dizer? Sentimos
o coração falar “bom dia” junto com a boca? Quando parecemos graciosos,
sorridentes, gentis e polidos, somos o que parecemos ser ou parecemos
ser o que ainda não somos?
Somos excelentes seres humanos?
Adolf Hitler, apesar de ter utilizado
sua espantável inteligência para atingir finalidades equivocadas, costumava
afirmar que a repetição constante de uma mentira acabava por torná-la
uma verdade. Se não tivesse razão, não teria conseguido criar um painel
tão abominável em detrimento de tantas vidas humanas. Como no exemplo do “bom
dia”, os alemães aprenderam, pela repetição de seu ditador, a mentira de que a
vida de um judeu tinha valor de nada e, mecanicamente, também como robôs bem programados,
eles foram absorvendo um comportamento racista, até que este se tornasse um
padrão, uma verdade.
Com base na mesma lógica, isto é,
fundamentos mentirosos com jeito de verdade, a Igreja Católica assassinou
tantos “hereges” ao longo da história e os homens-bomba são até hoje
convencidos de que a Jihad é
aplaudida por Alah. Foi assim que os negros e índios se tornaram pessoas “inferiores”
aos brancos e alvos de piadas e gracejos inadequados. É assim, também, que a
Igreja moderna, isto é, a Mídia, faz com que as massas acreditem, por exemplo,
que bebidas alcoólicas são um sinônimo de diversão e expressão da liberdade,
que os alimentos industrializados são saudáveis, que remédios alopáticos são a
única saída para as “doenças” e que um refrigerante gaseificado de tonalidade
escura é gostoso, embora, na realidade, ele tenha gosto de nada.
Esses exemplos são apenas para
ilustrar o poder de uma mentira quando repetida insistentemente. Creio que eu tenha
me excedido um pouco com eles, mas precisava de um alicerce resistente o
bastante sustentar o peso da urgência em que nos atentemos para este tipo
particular de mentira, que gosto de chamar de ilusão.
Seja como for, trazendo de volta
essa conversa do plano geral ao individual, a verdadeira intenção é gerar a
percepção do quanto temos particularmente agido como Hitler, como a Igreja e
como a Mídia, guardadas as devidas proporções.
A esta altura, você possivelmente
já se sentiu provocado, porque leu, entre outras que grifei, as palavras encenação
e mentira e, associando-as com o título deste texto enquanto é comparado com
Hitler, viu-se acusado de ser um grande fingido e mentiroso social. Para ser
sincero, era isso mesmo que eu queria. E digo mais. Queria também que doesse em
você. Se você se sentiu assim, então eu consegui o que queria, afinal a reflexão
(e, queira Deus, a mudança) começa justamente neste ponto.
Antes de começá-la, entretanto,
devo esclarecer que eu não estou me colocando fora do barco. Em certa medida, somos
todos atores sociais e, se escrevo na primeira pessoa, é porque me incluo na
história. No entanto, foi a consciência da necessidade de mudar que me impeliu
a escrever este texto, de maneira que ele vale para mim também, já que sei que tenho
um grande quinhão de sombra para resgatar em meu interior.
Vamos lá.
Quando digo que temos agido como
Hitler, quero dizer que temos adotado a mesma ferramenta que ele utilizou, no
holocausto, para convencer os alemães da inferioridade que atribuiu aos judeus a
fim de dominá-los. Pela repetição da farsa, tentamos fazer a mentira do que não
somos soar como se fosse verdade, interpretando papéis de pessoas perfeitinhas
e boazinhas que intimamente não conseguimos sustentar. E é assim que, em última
análise, conquistamos e cativamos amigos e amores, restando, porém, aquele
sentimento íntimo de frustração por sabermos que não somos exatamente como
aparentamos ser, sentimento este que procuramos enterrar bem fundo, por
vergonha e/ou medo de que ele possa aparecer para nós e/ou para os outros.
É hora, no entanto, de encararmos
o espelho.
Isso, naturalmente, não significa
que não tenhamos qualquer coisa boa dentro de nós. Claro que temos! O espelho
não vai rachar completamente quando resolvermos mirá-lo. Temos qualidades, e
muitas, que nos tornam capazes de sinceras atitudes e gestos de amor e
compreensão pelo próximo. Creio, inclusive, que o próprio Hitler não foi uma
pessoa totalmente ruim e lembro até que um professor que eu tive na faculdade,
Rodolfo Pamplona, disse numa aula que o citado ditador certamente teve algum
amor em si. Pelo menos por sua mãe... Meu professor chegou a escrever uma
poesia sobre isso!
Concordo com ele, afinal não
creio que exista uma pessoa essencialmente ruim que seja desprovida de algumas
virtudes. Mas penso que, desconsiderando-se as classes de espíritos iluminados,
como Sidarta Gautama, Maomé ou Jesus Cristo, não seria correto afirmar que
existem pessoas boas sem defeitos e é justo aí onde quero chegar.
Penso que, em geral, somos
pessoas essencialmente boas, de modo que este não é mais um texto pessimista
sobre a natureza humana. Se fosse, eu poderia ser algo como a reencarnação de
Augusto dos Anjos, mas confesso que suas poesias não me agradam um tanto sequer
e penso, com todo respeito, que seu sobrenome não condiz exatamente com o
conteúdo de sua literatura, porque anjos não costumam ser deprimentes... Mas,
voltando ao nosso papo, imagino que você e eu devemos concordar que nós,
apesar de sermos boa gente, decididamente não somos perfeitos!
Não podemos, no entanto,
comodamente aceitar a postura de eternas Gabrielas (“eu nasci assim, vou morrer
assim”) sob o pretexto de que ninguém é perfeito, afinal, ao que tudo indica,
estamos aqui para progredir moralmente. Isso é só para enfatizar que a
compreensão de que ninguém é perfeito simplesmente não tem o condão de amenizar
as faltas que você e eu, por puro comodismo, continuamos a cometer, nem de
diminuir os defeitos cuja correção nós teimamos em adiar.
Então, se estamos aqui para
evoluir e uma das formas seguras de fazê-lo é trocar os defeitos pelas
virtudes, para isso devemos, paulatinamente, fazer um esforço para identificar
o que precisa ser transformado em nós. Depois, vamos ter que fazer um esforço
maior para mudar o que precisa ser mudado e, só então, poderemos nos candidatar
ao posto de anjos e arcanjos.
Até lá, temos um longo caminho,
mas o negócio é começar.
Um bom termômetro do que estou
dizendo são os nossos lares. Pergunte a você mesmo se em casa, no convívio com
os seus, você é o mesmo mocinho ou a mesma mocinha que aparenta ser no seu
trabalho! Tão compreensivo, tão atencioso, tão gente boa... Se tiver mais
coragem, pergunte em casa quais são os seus defeitos e provavelmente descobrirá
que eles são exatamente (ou quase isso) os que você tenta camuflar quando em
convívio com pessoas que não moram com você.
Eu te asseguro que isso vai doer,
vai te atormentar um pouco e você provavelmente vai tentar fugir da verdade por
um tempo. Entretanto, quanto mais rápido você admitir para si mesmo o que
descobrir a respeito de si, mais rápido vai entender que a melhor solução se
traduz em (ao menos tentar) transformar-se numa pessoa melhor. A
responsabilidade é toda sua, mas você pode contar com uma ajudinha vinda do
Alto. Falando sério, basta pedir.
Será que sua mãe, seus irmãos,
filhos ou cônjuge têm exatamente a mesma opinião que os de fora têm sobre você?
Será que eles têm exatamente a mesma opinião que você tem ou que se convenceu
de ter sobre si mesmo? Em casa, você consegue sustentar as máscaras de que se
utiliza para conquistar a si mesmo e as pessoas ao seu redor? Até quando lhe
será conveniente manter as aparências de que se utilizou e as impressões que
você suscitou nas pessoas com quem convive? Até quando você suportará enganar a
si próprio?
Fingimos, socialmente, ser o que
ainda não somos e, de quebra, nos acomodamos com nossa aparência de bonzinhos,
como se ela nos bastasse em nossa jornada pela Terra. Assim, deixamos de lado o
cuidado que deveríamos ter com quem realmente somos e o compromisso que
deveríamos assumir no sentido de nos reformarmos nas partes em que ainda não estamos
lá tão bem.
Perdemos, finalmente, uma grande
oportunidade de encurtar as distâncias que nos separam moralmente de alguém como
Jesus e, enquanto isso, o tempo passa, na medida em que nos habituamos ao
teatro ilusório que praticamos diariamente.
O pior é que os maiores prejudicados
com essa mentira somos nós próprios, porque, enquanto nos iludimos a respeito
de quem somos, desperdiçamos uma grande chance de realizar a tão recomendável
reforma íntima para o nosso próprio bem, tendo em vista que isso tudo tem
graves reflexos em nossa saúde psíquica, física e espiritual.
Enquanto escrevo, imagino que a
reação de boa parte das pessoas, quando em contato com este texto, será iniciar
um diálogo íntimo sobre como elas são boas, sobre como não são invejosas, não
são ciumentas, como são educadas, amorosas e sobre como eu estou completamente
enganado sobre elas.
Faz-se, então, a cena do ego
contra o self na forma de milhares de vozes em guerra dentro de si. Que grande
e trabalhosa confusão! Sei bem como é, afinal todos os dias eu tenho que matar
uma parte do que eu era no ontem, reconciliar-me com parte do homem que fui e
que já não me serve mais, reconhecer minha arrogância, minhas fraquezas e
defeitos, ressignificar meus medos, tudo em nome de sentir amor com mais
pureza. E falo sentir o amor, porque isso é muito mais interessante do que
meramente concebê-lo de maneira racional.
E você? Você sente mesmo o amor
que diz sentir? Quem é você? Você sabe quem é mesmo você?
Mais uma vez, quero deixar claro
que não estou sugerindo que não haja pessoas boas por aí. Se você estiver muito
magoado com o que está lendo e acha que de fato está num patamar moral acima da
média, isso também é uma possibilidade e então este texto não se lhe aplica.
Nesse caso, eu peço perdão e retiro o que disse, afinal, você deve ser alguém
como Gandhi, Madre Tereza de Calcutá, Irmã Dulce e essa sorte de pessoas
evoluídas que, ainda assim, reconheciam em si tantos defeitos...
Caia na real! Se estamos
encarnados por aqui, isto é um sinal de que ainda temos muita sombra para
transformar em luz. Note que, apesar de ser um lugar bacana, o planeta Terra
não é exatamente um paraíso encantado, logo seus habitantes também não são lá
essa fofura toda. Então tome fôlego e
olhe para dentro. Você não vai encontrar um poço de enxofre, mas certamente também
não mergulhará num puro mar de rosas...
Precisamos encarar a nossa parte
que ainda carece de amor e transformação, porque não há meio de mudar enquanto
não se reconhece a mudança como algo necessário. Só se busca a cura quando se
sabe que a doença existe, não é assim?
Pois bem. Sabe Jesus? Pois é,
puro amor, Aquele cara. Por isso mesmo é tão difícil ser como Ele. Mas vou te
dizer uma coisa, está aí uma pessoa que vale a pena imitar, mas apenas depois
de começarmos o processo de autoconhecimento, fazendo as pazes com nossa sombra
e trocando-a, aos poucos, por luz com a força e o auxílio daquilo que já temos
de bom. No desenrolar dessa história, quando formos reformar os comportamentos,
lembremo-nos das coisas que Ele nos recomendou e vamos, pacientemente, seguindo
o seu exemplo.
É assim que não vamos mais
precisar encenar ou reproduzir mecanicamente os comportamentos que aprendemos
por questões de etiqueta ou teatro social. É assim que poderemos deixar de
parecer ser quem não somos, de sorrir de mentirinha ou de elogiar por interesse,
passando a ser o que gostaríamos de ser, a agir movidos por amor puro, com
respeito por nós mesmos e pelo próximo, passando finalmente a desejar bom dia e
sentir sinceramente que desejamos aquilo que falamos...
Isso é emocionante de verdade e
eu acredito que as coisas só poderão começar a mudar genuinamente ao nosso
redor a partir do momento em que começarmos a mudar por dentro, pois, de fato,
o mundo de cada um se apresenta como o reflexo do que se é no íntimo. É por
isso que dizem que, para amar alguém, você deve começar amando a si mesmo. Ou,
como ensinou Jesus, “Amai ao próximo como a ti mesmo”.
Bem, se a coisa estiver
funcionando como planejada, neste momento você deve se perguntar como é possível
realizar essa mudança. Mais uma vez, Ele é quem te responde, quando diz para
você vigiar e orar. “Vigiai e orai”.
Arrisco-me, aqui, a uma
interpretação. Vigiar é observar-se, criar coragem e mirar-se no espelho. Você
vai ver que não é tão bonzinho assim e, então, vai precisar orar. Orar é pedir
orientação e começar a realizar a mudança, já que, sabendo daquilo que não vai
bem, você se vê livre para substituí-lo por algo melhor. Como diz Blandina,
minha terapeuta, OIC, observar a ação, identificá-la e corrigi-la. Mas, como em
“Speed of Sound”, de Coldplay, “se você não tentar, nunca vai saber” como é bom
mudar!
Comecemos o quanto antes. Assim teremos,
finalmente, a substituição da mentira pela verdade, do parecer ser pelo ser,
processo este que eu gosto de chamar de desilusão.
Tem uma frase do livro “Esteja
aqui agora”, do monge budista Ram Dass, que diz que “enquanto ele está ocupado
sendo uma lagarta, não pode ser uma borboleta”. Analogicamente, eu diria que,
enquanto nós nos mantivermos ocupados fingindo ser o que não somos, jamais
seremos o que fingimos ser.
Perguntemos, então, a nós mesmos:
Como vamos nós? Este é um bom ponto de partida para a desilusão, em que
sairemos do casulo das aparências para o voo do amor cristalino.
Estejamos, pois, atentos e
caminhemos confiantes ao próximo nível que nos espera. Em tempos de transição
planetária, esta reflexão é o mínimo que podemos fazer em nome do amor, sem o
qual nós certamente pereceríamos.
Que Deus nos abençoe e nos
oriente no caminho da autotransformação para o bem de toda a humanidade. Que
possamos obter a inspiração necessária para realizar nossa tarefa satisfatoriamente
e que o amor possa preencher completamente o coração de todos nós, inclusive o
de Hitler, onde quer que ele esteja.
Com amor,
Henrique da Silva Ancelmo.
Salvador, 10 de julho de 2012.
Dedico este texto à Sra. Blandina Brito, minha Tia-terapeuta do
coração, pela dedicação, cuidados e impagável contribuição que tem dispensado
para o meu crescimento pessoal; ao Sr. Artur Barôncio, grande amigo cujos
abraços afetuosos e sabedoria muito me alegram e fortalecem os dias; às Sras.
Pompéia e Marcela, do atendimento fraterno da FEIS, sempre amorosas e pacientes
comigo e meus questionamentos; aos meus amigos da Pós-Juventude Espírita da
FEIS e à minha família querida do coração.
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