quarta-feira, 27 de agosto de 2014

A Lavanderia de Anastério



   A Lavanderia de Anastério

 Macintosh HD:Users:CLAUDIA_REINA:Desktop:Unknown-2.jpeg     A montanha  da humanidade com o Sol de Zaratustra –Edvard Munch

          Anastério  era  um menino ossudo, alto e pontudo. Solitário. Orelhas de abano.  Nasceu   na cidade Vila Nova do Coito no distrito de Santarém. Na escola Martírio de Todos os Santos, quando  perguntavam o porquê  de seu nome respondia envergonhado: mistura de Ana Sousa,  minha mãe e Eletério  Sousa, meu pai. 
        Os líderes de futebol juvenil Pedro Dourival, João Espinhosa  e  Antônio   Barata  caçoavam das   orelhas e das pernas finas do menino, o que era imitado pela garotada endiabrada. As meninas riam e repetiam: Anastério. Anastério. Anastério. E o som de seu nome   invadia  o mundo.  Seu mundo. Não jogava futebol.  Nem beisebol. Colecionava bonés de times  para  esconder  as orelhas  e não escutar o eco de  seu nome.  Usava calças e camisas largas para disfarçar as pernas e o corpo magro. As orelhas, as pernas finas e o nome eram suas desgraças.
        Sempre dormia de lado. As pernas compridas puxadas para o peito.  Não adiantava. Não havia reza ou proteção divina.  No breu da noite , o som  teimava em voltar: Anastério. Anastério. Anastério.  Aprendeu a não tomar lugar.  A não ser um desperdício de espaço.   Vivia mergulhado em si mesmo.  Adotou um cão de rua  para abrandar a solidão. Como seria bom se alguém se  importasse vez ou outra.  Envergonhado, andava cabisbaixo como a esconder ossos,  pernas, orelhas, nome. Se não  se chamasse Anastério talvez fosse  feliz. Triste o destino de um nome.
      Terminado o período escolar, foi trabalhar na Lavanderia Limpa Vila Nova do Coito.  Gostava do trabalho que o fazia esquecer das tormentas da alma, das orelhas, das pernas e do nome. Ficava escondido no fundo da loja  esfregando, lavando e passando com tal sofreguidão, que parecia estar a limpar todas as imundices do mundo.  Tornou-se o melhor   tirador de  manchas da cidade. Usava uma fórmula por ele inventada.   A fórmula se tornou tão popular que com o sucesso de vendas, ele pode comprar a lavanderia e continuar lavando, passando, esfregando com muito zelo e dedicação para manter a cabeça ocupada e esquecer suas feridas. 
    Com tanto esmero  na limpeza, ele  criou  uma estranha mania: descobrir  os segredos dos moradores    pelos modelos e sujeiras de suas roupas, toalhas e lençóis. Depois de analisar as manchas, modelos , sujeiras e objetos esquecidos fazia algumas pequenas investigações . Deleitava-se  com as suas descobertas.  Algumas ele fazia questão de registrar na memória  para não esquecer os espelhos da aparências.
    A professora  primária Joana Serra Pimenta Fogaça trazia   toalhas brancas sempre manchadas de batom e rímel. Toalhas úmidas e perfumadas. Anastério pegava uma das toalhas e esfregava no corpo. Imaginava Joana nua depois do banho a passar a toalha  entre as pernas  e os seios.   Joana era amante de Hélio  Ferrão da Cruz Lobo,  gerente do Banco de Portugal. Ele  sustentava os luxos de Joana, com empréstimos, investimentos e doações bancárias . Lobo  era o homem mais importante da cidade depois do prefeito Doutor Salgado Raposo de Almeida Praga. O povo dizia que eram os donos do dinheiro . Lobo era convidado para todas as festas de casamento, inaugurações de escolas, hospitais e tribunais . Nas comemorações   sentava ao lado do prefeito . O juiz   da comarca não gostava  de festas ou comemorações públicas. Ausente das homenagens, nunca estava  ao lado do gerente Lobo e do prefeito Raposo.
           João Espinhosa usava camisas pretas e iguais como o restante do vestuário.  Elas continham  manchas enormes nas axilas e restos de certo pó esbranquiçado. Era obsessivo por repetição. Repetia compulsivamente frases, números e comportamentos.  Não tinha passado seis meses  em Lisboa  como   contara a família.  Tinha estado em um sanatório .
    Antônio Barata  tinha os colarinhos e punhos sempre ensebados . As camisas    combinavam com as calças de tergal vincadas. Homem de poucos risos,  deixava nos bolsos das calças cartões  das termas Cassandra . Sua esposa, Dolores, usava roupas sem viço como seu corpo. Mulher amarga, vivia em quarto separado do marido. 
        Joaquim Augusto Dos Reis Severo, comerciante afortunado, marido de Florinda, usava pijamas de  bolinhas brancas que combinavam com as cuecas que sempre ficavam enroladas nas calças. Tinha um caso com Pedro Dourival que se transformava em drag queen nas boates da capital.  Pedroca sempre levava seus vestidos de lame  para lavar.
        A batina de padre Amadeus Carneiro dos Anjos trazia manchas amareladas.  Caridoso e altruísta,  ele sempre amparava os rapazes pobres da paróquia.  Anastério pedia perdão a Deus por ter descoberto os segredos do pároco.
       Mariana Caetano do Perpétuo Socorro, casada com um rico  vinicultor, ajudava  entidades filantrópicas com grandes somas de dinheiro.  Mulher elegante, usava terninhos bem talhados com gravatas borboletas coloridas. Dizia ser a última moda entre   mulheres europeias.  Namorava escondido a filha da vizinha que não faz muito tempo  tinha feito a primeira comunhão na Igreja Calvário das Santas  Virgens.
      O delegado  Doutor Armando  Passos de  Aranha, conhecido pelo seu rigor com os presos e criminosos, esquecia entre os lençóis um par de algemas  vermelhas e um chicote de couro roxo. Diziam as más-línguas que ele  era sadomasoquista.
       Doutor    Amado Ribas   Peralta Penteado , médico de senhoras e senhoritas,  charmoso e bonito,  colecionava  roupas íntimas de pacientes.  Uma vez   confundira as sacolas de uniformes sujos que deveria mandar à lavanderia. Enviou  uma coleção   de calcinhas. Eram dezenas. De vários modelos e cores. Algumas inusitadas.  Anastério teve a certeza de reconhecer uma  calçola de  Dolores.
    Clara Clarice Maria dos Prazeres, psicanalista freudiana ortodoxa, muito solicitada pelos neuróticos, psicóticos  e histéricas de Vila Nova do Coito,  deixava entre   suas fantasias de  coelhinhas, tolhas felpudas e lençóis de seda que mandava lavar,  bizarros objetos que eram usados para  desvendar os sonhos de seus pacientes.   
   Anestério ria com gozo ao descobrir segredos, obsessões, farsas, traições,  corrupções, maldades, mentiras e perversões de muitos dos moradores da  cidade. Ele  só não descobria o segredo do juiz da comarca.  Doutor Álvaro Franco Arruda Viveiros Monjardim  era  um homem discreto e   lavava suas roupas em casa. 
    Tantas descobertas tiveram um   efeito libertador em Anastério. Ele deixou de andar cabisbaixo. Erguia os ombros e a cabeça com altivez. O olhar, a voz, a expressão facial  possuíam  uma segurança  nunca vista.  A   simplicidade   pueril de seus pais  em misturar nomes de batismo  não significava nada perto de tudo que tinha descoberto. O que eram as suas pernas finas e  as suas orelhas diante de tudo que tinha visto na lavanderia? Passou a sorrir. Muito.   O sorriso de seus dentes brancos iluminava a sua face.  Livrou-se dos bonés e das roupas largas.  Jogou fora dos ouvidos os ecos que sempre o perseguiram. Os escárnios dos garotos. Os risos das meninas. Onde estava tanta humilhação sofrida? Longe. Bem longe. O  som de seu nome não mais o envergonhava.  Nenhum som do passado rompia a tranquilidade de suas noites. A sua garganta passou a arder com vontade de gritar ao mundo o seu nome.
     E, agora, quando perguntavam o porquê de seu nome, dizia  com orgulho e firmeza:  Anastério - mistura de Ana  Sousa, minha mãe e Eletério  Sousa, meu pai.

Cláudia Reina


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