A Lavanderia de Anastério
Anastério era um
menino ossudo, alto e pontudo. Solitário. Orelhas de abano. Nasceu
na cidade Vila Nova do Coito no distrito de Santarém. Na escola Martírio
de Todos os Santos, quando perguntavam o
porquê de seu nome respondia envergonhado:
mistura de Ana Sousa, minha mãe e
Eletério Sousa, meu pai.
Os líderes de
futebol juvenil Pedro Dourival, João Espinhosa e Antônio
Barata
caçoavam das orelhas e das pernas finas do menino, o que
era imitado pela garotada endiabrada. As meninas riam e repetiam: Anastério.
Anastério. Anastério. E o som de seu nome
invadia o mundo. Seu mundo. Não jogava futebol. Nem beisebol. Colecionava bonés de times para
esconder as orelhas e não escutar o eco de seu nome.
Usava calças e camisas largas para disfarçar as pernas e o corpo magro.
As orelhas, as pernas finas e o nome eram suas desgraças.
Sempre dormia de lado. As pernas
compridas puxadas para o peito. Não
adiantava. Não havia reza ou proteção divina.
No breu da noite , o som teimava
em voltar: Anastério. Anastério. Anastério.
Aprendeu a não tomar lugar. A não
ser um desperdício de espaço. Vivia
mergulhado em si mesmo. Adotou um cão de
rua para abrandar a solidão. Como seria
bom se alguém se importasse vez ou
outra. Envergonhado, andava cabisbaixo
como a esconder ossos, pernas, orelhas,
nome. Se não se chamasse Anastério
talvez fosse feliz. Triste o destino de
um nome.
Terminado o
período escolar, foi trabalhar na Lavanderia Limpa Vila Nova do Coito. Gostava do trabalho que o fazia esquecer das
tormentas da alma, das orelhas, das pernas e do nome. Ficava escondido no fundo
da loja esfregando, lavando e passando com
tal sofreguidão, que parecia estar a limpar todas as imundices do mundo. Tornou-se o melhor tirador de
manchas da cidade. Usava uma fórmula por ele inventada. A
fórmula se tornou tão popular que com o sucesso de vendas, ele pode comprar a
lavanderia e continuar lavando, passando, esfregando com muito zelo e dedicação
para manter a cabeça ocupada e esquecer suas feridas.
Com tanto
esmero na limpeza, ele criou uma estranha mania: descobrir os segredos dos moradores pelos modelos e sujeiras de suas roupas,
toalhas e lençóis. Depois de analisar as manchas, modelos , sujeiras e objetos
esquecidos fazia algumas pequenas investigações . Deleitava-se com as suas descobertas. Algumas ele fazia questão de registrar na
memória para não esquecer os espelhos da
aparências.
A professora
primária Joana Serra Pimenta Fogaça trazia toalhas
brancas sempre manchadas de batom e rímel. Toalhas úmidas e perfumadas. Anastério
pegava uma das toalhas e esfregava no corpo. Imaginava Joana nua depois do
banho a passar a toalha entre as pernas e os seios. Joana
era amante de Hélio Ferrão da Cruz Lobo,
gerente do Banco de Portugal. Ele sustentava os luxos de Joana, com empréstimos,
investimentos e doações bancárias . Lobo
era o homem mais importante da cidade depois do prefeito Doutor Salgado
Raposo de Almeida Praga. O povo dizia que eram os donos do dinheiro . Lobo era
convidado para todas as festas de casamento, inaugurações de escolas, hospitais
e tribunais . Nas comemorações sentava ao lado do prefeito . O juiz da comarca
não gostava de festas ou comemorações públicas.
Ausente das homenagens, nunca estava ao
lado do gerente Lobo e do prefeito Raposo.
João Espinhosa
usava camisas pretas e iguais como o restante do vestuário. Elas continham manchas enormes nas axilas e restos de certo
pó esbranquiçado. Era obsessivo por repetição. Repetia compulsivamente frases,
números e comportamentos. Não tinha
passado seis meses em Lisboa como contara a família. Tinha estado em um sanatório .
Antônio Barata tinha os colarinhos e punhos sempre ensebados
. As camisas combinavam com as calças
de tergal vincadas. Homem de poucos risos, deixava nos bolsos das calças cartões das termas Cassandra . Sua esposa, Dolores, usava
roupas sem viço como seu corpo. Mulher amarga, vivia em quarto separado do
marido.
Joaquim
Augusto Dos Reis Severo, comerciante afortunado, marido de Florinda, usava
pijamas de bolinhas brancas que
combinavam com as cuecas que sempre ficavam enroladas nas calças. Tinha um caso
com Pedro Dourival que se transformava em drag
queen nas boates da capital. Pedroca
sempre levava seus vestidos de lame para lavar.
A batina de padre Amadeus Carneiro dos Anjos trazia
manchas amareladas. Caridoso e
altruísta, ele sempre amparava os rapazes
pobres da paróquia. Anastério pedia
perdão a Deus por ter descoberto os segredos do pároco.
Mariana Caetano do Perpétuo Socorro, casada
com um rico vinicultor, ajudava entidades filantrópicas com grandes somas de
dinheiro. Mulher elegante, usava
terninhos bem talhados com gravatas borboletas coloridas. Dizia ser a última
moda entre mulheres europeias. Namorava escondido a filha da vizinha que não
faz muito tempo tinha feito a primeira comunhão
na Igreja Calvário das Santas Virgens.
O delegado Doutor Armando
Passos de Aranha, conhecido pelo
seu rigor com os presos e criminosos, esquecia entre os lençóis um par de algemas
vermelhas e um chicote de couro roxo.
Diziam as más-línguas que ele era
sadomasoquista.
Doutor Amado Ribas
Peralta Penteado , médico de senhoras e senhoritas, charmoso e bonito, colecionava
roupas íntimas de pacientes. Uma vez
confundira as sacolas de uniformes sujos
que deveria mandar à lavanderia. Enviou uma
coleção de calcinhas. Eram dezenas. De vários modelos
e cores. Algumas inusitadas. Anastério
teve a certeza de reconhecer uma calçola
de Dolores.
Clara
Clarice Maria dos Prazeres, psicanalista freudiana ortodoxa, muito solicitada
pelos neuróticos, psicóticos e
histéricas de Vila Nova do Coito,
deixava entre suas fantasias de coelhinhas, tolhas felpudas e lençóis de seda
que mandava lavar, bizarros objetos que
eram usados para desvendar os sonhos de
seus pacientes.
Anestério ria com
gozo ao descobrir segredos, obsessões, farsas, traições, corrupções, maldades, mentiras e perversões de
muitos dos moradores da cidade. Ele só não descobria o segredo do juiz da comarca.
Doutor Álvaro Franco Arruda Viveiros
Monjardim era um homem discreto e lavava suas roupas em casa.
Tantas descobertas tiveram um efeito
libertador em Anastério. Ele deixou de andar cabisbaixo. Erguia os ombros e a
cabeça com altivez. O olhar, a voz, a expressão facial possuíam
uma segurança nunca vista. A simplicidade
pueril de seus pais em misturar nomes de batismo não significava nada perto de tudo que tinha descoberto.
O que eram as suas pernas finas e as
suas orelhas diante de tudo que tinha visto na lavanderia? Passou a sorrir. Muito. O
sorriso de seus dentes brancos iluminava a sua face. Livrou-se dos bonés e das roupas largas. Jogou fora dos ouvidos os ecos que sempre o
perseguiram. Os escárnios dos garotos. Os risos das meninas. Onde estava tanta humilhação
sofrida? Longe. Bem longe. O som de seu
nome não mais o envergonhava. Nenhum som
do passado rompia a tranquilidade de suas noites. A sua garganta passou a arder
com vontade de gritar ao mundo o seu nome.
E, agora, quando perguntavam o porquê de
seu nome, dizia com orgulho e firmeza: Anastério - mistura de Ana Sousa, minha mãe e Eletério Sousa, meu pai.
Cláudia Reina
Nenhum comentário:
Postar um comentário