A Pausa de Clara.
Eu
sou a pausa entre duas notas....
Rainer
Maria Rilke
Quão bela é Bollenstreeck, coberta por tapeçarias de vivas flores
trançadas entre Leiden e Haarlen. Toda região, encantadora, abre-se
para o espanto de estar vivo. Lírios, jacintos, íris, dálias, narcisos,
orquídeas. As grandiosas plantações de tulipas são um espetáculo à parte.
Soberanas, emolduram os campos com um fulgurante colorido. As tonalidades
se alteram conforme a luz cintila .
A primavera é a primavera . E dela emerge uma beleza que predispõe o
amor.
Delicia-me despertar mais tarde entre cobertas macias.
Carícias derramadas.
O amor
iluminado por amanheceres prateados.
Entardecer acetinado. A flor. A seiva. A fonte. Deito-me na relva
umedecida. Caminho à beira dos antigos canais de Leiden. Os raios
oblíquos do sol poente a refletir nas águas. As pedras seculares de onde
Rembrandt nasceu. A praça ornada pelas copas das árvores. Esses dias
possuem uma delicada harmonia . Brisa envolvente sussurrando
canções . Pausa entre as notas. Doce e indolente.
A tarde se encerra a esperar o aclarado, luzes das cidades.
Uma voz me leva à libertação. Conservo-me ausente
do outrora invasivo. Faces mascaradas. Todas aos pedestais. Fantasmas imersos
em impérios acinzentados. A deterioração das criaturas, aos
servos, não causa vergonha. Sendo os servos, bem distintos, dos só pobres
serviçais. Soberba teatral. Personagens em meios às plumas. Estardalham.
Submissos a bajular, regalias. Encenação vulgar. Aplausos. Vitoriosa
hipocrisia. Tal loucura dos fantoches! Cada um se encarregando
de sugar o outro. Rivalidades: pequenas falhas, venenos mortais. Não há
vícios entre os apaniguados que não encontram silêncios
complacentes. Um frio penetrante escorre pelas vísceras desses.
Lobos se enredam no torpe cenário de poder, no torpe cenário de glória.
Farejam o fresco sangue. Áspides sombrias.
Eu
sinto um deleite secreto, fruído às escondidas, ao escapar das
escadarias. Crivadas de pedras. Roubadas dos
templos.
Consinto que
lamentem o meu destino banal , não descubram o meu prazer, inundado de
mim.
Na procura por
ternura pura, o azul profundo de tantos oceanos , o verde das trilhas
sinuosas entre íngremes penhascos, o branco nas geleiras esculpidas, o
rubro fulgurante dos roseirais, as luzes, as sombras, a água límpida que
lampeja nos lodaçais, em meus dias.
Mesmo que procurassem, não encontrariam a vida que transborda pelos
poros. Não saberiam decifrar os sinais dessa linguagem tão íntima. Não
sentiriam o assombro das flamas nas velas instáveis. A alegria do
homem que lavra a terra sem ser
servil.
Tão afastada estou desses corpos sáfaros por veias ressecadas. As
cores desabrocham em meu ser como os bulbos das tulipas. Mantenho janelas
e portas abertas aos mares, às montanhas desalinhadas, aos céus e às suas
variantes solares- enevoadas-estreladas.
O
murmúrio das melodias queridas aquece o coração. A chuva escorrendo
pelos telhados. O sibilo do vento. O tilintar das taças. O badalar dos
sinos. O cântico dos pássaros. Os feixes de lenha que tremulam. A sinfonia dos
corpos amantes.
A contemplação das coisas ao redor aviva a alma. A bandeja de
prata. A chaleira de porcelana. A toalha de renda. Os jarros flóreos. Os
retratos nos aparadores de nogueira. Os livros espalhados pelos cantos e
recantos. O rubi do vinho na mesa posta para o jantar.
Os aromas enraízam na memória. O pão e o vinho. A terra
banhada. O solo adubado. A fragrância dos jasmins e das lavandas. O odor
único do homem amado.
Recosto-me ao tronco das cerejeiras em flor. Devaneio
observando a dança das pétalas onduladas ao vento. O espanto da
pausa conduz ao voo esperado.
Existe um tempo de
pausa onde não fazer coisa alguma confere o sentido de plenitude.
Cláudia Reina
15 de Junho de 2013.
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