Devemos fazer pelos outros o que gostaríamos que fizessem por nós
Por Jeane Vidal
Era uma noite comum no hospital.
O dr. Raul havia acabado de chegar para dar o seu
plantão.
No corredor, alguns pacientes aguardavam
atendimento. Ninguém em estado grave. Nenhuma emergência. Graças a Deus, tudo
parecia tranquilo.
Médico ortopedista, o dr. Raul é um daqueles
médicos admirados por todos e muito procurado. Gentil, prestativo, solidário e
extremamente profissional.
Embora atenda a maior parte do seu tempo em um
hospital particular, ele não abre mão de dar plantão todas às sextas-feiras no
hospital municipal, pois sabe da carência de profissionais na rede pública, e
por isso faz questão de dar sua contribuição.
Escolheu a medicina por vocação. Tem verdadeira
paixão pela vida humana. O seu maior prazer é zelar por ela.
Estava atendendo o quinto paciente da noite
quando ouviu uma movimentação estranha na recepção. Ao sair da sala se deparou
com vários enfermeiros correndo de um lado para outro, atônitos.
Ainda sem entender o que estava acontecendo,
aproximou-se de um deles e perguntou: "Porque esse alvoroço todo?"
O enfermeiro - tomando fôlego - respondeu:
"Houve um acidente grave aqui nas proximidades e as vítimas estão sendo
trazidas para cá, mas nós não temos estrutura para recebê-las. Não há leitos
suficientes para todos. Recebemos a informação de que são aproximadamente dez
pessoas - a maioria em estado grave -, e temos apenas seis leitos
disponíveis."
Percebendo a seriedade da situação, o dr. Raul
decidiu agir rápido. Era preciso tomar algumas providências para que
essas vítimas pudessem ser atendidas em tempo. Qualquer demora podia significar
a perda de uma vida, ou de várias.
As ambulâncias começaram a chegar. Uma. Depois
outra e mais outra. Na primeira, uma criança de apenas 5 anos com fratura
exposta no braço direito. Os pais também gravemente feridos.
Na segunda, quatro jovens, três deles menores de
idade. O quarto, em estado ainda mais grave, não portava documentos, e
por isso não pôde ser identificado. Segundo informações dos policiais que
atenderam a ocorrência, o veículo em que eles estavam foi o que provocara o
acidente. Estavam em alta velocidade e ultrapassaram o farol vermelho, se
chocando com uma Van que levava seis passageiros.
A terceira ambulância trazia mais três vítimas,
essas, entretanto, com ferimentos leves. Foram atendidas, medicadas e pouco
tempo depois receberam alta.
Das sete pessoas gravemente feridas, felizmente,
seis puderam ser atendidas e direcionadas para a UTI.
Mais ainda faltava o quarto jovem. Preocupado, o
dr. Raul resolveu contatar alguns hospitais. Não havia vagas.
De repente, um fio de esperança. Veio à sua
memória um amigo de faculdade que havia montado uma clínica particular e que
dispunha de uma UTI com equipamentos de última geração. Era um médico
bem-sucedido, também ortopedista, muito conceituado. Contudo, o perfil de seus
pacientes era bem diferente dos que o dr. Raul costumava receber em seu plantão
- pessoas de baixa renda, que não tinham condições de pagar por um bom convênio
e menos ainda por uma consulta particular. Enquanto o seu colega tinha como
pacientes pessoas de alto poder aquisitivo, que não se importavam - e tinham
condições - de pagar 500 reais por uma consulta.
Mas era uma emergência e ele não ia se negar a
prestar socorro, pensou. Além disso, acima de questões financeiras e pessoais
está o compromisso com a vida humana.
Quando o dr. Sandro atendeu ao telefone, o dr.
Raul foi direto ao assunto: "Temos uma emergência aqui no hospital e não
temos estrutura para atender a todos. Preciso que você receba na sua clínica um
jovem gravemente ferido em um acidente de trânsito, pois não temos mais
leitos."
"E quem irá se responsabilizar pelas
despesas?" Foi a primeira pergunta do dr. Sandro. "Não temos
tempo para resolver isso agora, o rapaz precisa de socorro imediato, o tempo
está passando e a cada minuto diminuem suas chances de sobrevivência",
enfatizou o dr. Raul.
Irredutível, o médico continuou: "Só recebo
em minha clínica se alguém se responsabilizar pelas despesas. Minha clínica não
é uma entidade filantrópica", ironizou.
Não vendo alternativa e pensando na integridade
física do jovem e no seu compromisso com a vida, se comprometeu a arcar com as
despesas caso a família da vítima - ainda não identificada - não tivesse
condições de pagar.
Como ele ia pagar, ainda não sabia. O que ele
sabia era que faria o que estivesse ao seu alcance para salvar uma vida, ainda
que de um desconhecido.
Pensou nos pais daquele jovem, que nem imaginavam
que o filho, naquele momento, estava agonizando no corredor de um hospital,
aguardando atendimento e com a vida por um fio. Pensou no filho. Aquele rapaz
devia ter a mesma idade dele. E se fosse ele no lugar daquele rapaz? Não,
ele não podia ficar indiferente. Ia fazer por aquele rapaz o que ele gostaria
que fizessem pelo filho dele.
Já na ambulância, sentado ao lado do jovem
inconsciente, o dr. Raul pensava na frieza do dr. Sandro. Infelizmente,
ele era o retrato da sociedade moderna - que supervaloriza o dinheiro e o poder
em detrimento da vida.
Na Clínica, o dr. Sandro aguardava juntamente com
sua equipe para atender o rapaz. A UTI já estava preparada para
recebê-lo.
Chega a ambulância trazendo o jovem. Começa a
corrida pela vida. Já na sala de cirurgia, o paciente é preparado para
passar por um procedimento cirúrgico.
Os dois médicos se cumprimentam e seguem lado a
lado para a sala de cirurgia, onde o rapaz será assistido.
Ao abrir a porta e se deparar com aquele rapaz, o
dr. Sandro fica paralisado. Não podia ser. Aquilo só podia ser uma brincadeira.
Mas não era. O coração fica apertado e a consciência o acusa. Ali,
diante dos seus olhos, estava o seu único filho. Não conseguindo
conter as lágrimas, retirou-se da sala.
Vendo que o colega não tinha condições de
conduzir a cirurgia - nem é recomendado em situações como essa -, o dr. Raul
assumiu a equipe médica e deu início ao procedimento.
Enquanto isso, do lado de fora, o dr. Sandro,
introspectivo, reavaliava os seus valores e sua conduta. O que poderia ter
acontecido com seu filho se o dr. Raul não tivesse assumido a responsabilidade
pelas despesas da clínica para convencê-lo a prestar socorro ao seu próprio
filho? Como pôde ser tão mesquinho? Não fosse a compaixão e amor ao próximo do
colega - que ao contrário dele priorizou a vida de um desconhecido -, seu filho
não sobreviveria.
Sentia-se envergonhado.
Permaneceu ali sentado por horas, esperando o
término da cirurgia, até que, finalmente, o dr. Raul saiu da sala e informou
que a cirurgia fora um sucesso. O rapaz estava fora de perigo.
Aliviado, o pai do jovem abraçou o amigo,
agradeceu e lhe pediu perdão pela sua má postura, como profissional da medicina
e como ser humano.
E comunicou a sua decisão: a partir daquele dia
também daria plantão naquele mesmo hospital público para onde o filho havia
sido levado. E, a exemplo do amigo, não mediria esforços para salvar uma vida.
Havia aprendido a lição.
"Portanto, tudo o que vós quereis que
os homens vos façam, fazei-lho também vós a eles; porque esta é a lei e os
profetas." (Mt. 7:12).
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