Cenas
do Mundo- O Sorriso da Mulher de Sarajevo- 22
( Foto: Cláudia Reina- Sarajevo)
O Sorriso da Mulher de Sarajevo - 22
Corpos em busca de abrigos. Andarilhos sem rumo. Trilhas de
destroços. O declínio sombreia ruínas.
Meu amor.
Dê-me as sombras dos teus olhos turvos. Olhos de bruma.
Ataques aéreos. Em simetria. Bombas ritmicamente lançadas sobre
a cidade cercada. A regularidade fria dos relógios arruína construções seculares.
A beleza agride a virilidade dúbia das feras. A impotência
revolvida em cólera fortificada tal qual castelos medievos.
Meu amor.
Dê-me pássaros a povoar túmulos lodosos.
Quantos e quantas
Sumayyah, Marijas, Fazels, Andrijas, Khadijas, Vanovics, Habibs,
Lukovics, Fouads e Kostinas explodem no ar.
Quanta infância e juventude entupidas em valeiros. E sempre o
mesmo som a ressoar das bombas e dos fuzis.
O nevoeiro cobre a bicicleta azul do poeta morto.
Afogam-se mães em rios de sangue talhado. Ontem ainda
fotografias enfeitavam as paredes nuas das casas.
O peso da solidão materna. Pedra fria. Cova rasa. Órfãos da
humanidade.
Sobre túmulos planto lírios.
Meu amor.
Dê-me as mãos enegrecidas das cinzas dos filhos mortos. As tuas mãos.
Livra-me das palavras
malditas lançadas nos sepulcros.
Dê-me amanheceres
prateados sobre uma Saravejo encarcerada.
Meu amor.
Dê-me o teu longo túnel de desespero.
Ofereço-lhe a luz opaca de uma lâmpada vacilante que se adianta
para iluminar a noite invernal.
Ofereço-lhe restos ornados por rosas que cultivo. Vermelhas.
Omarska, Keraterm e Trnopolje.
Campos secos de extermínios. A terra é untada com os corpos de
vinte e duas mil mulheres retalhadas com lâminas afiadas. Queimadas.
Violentadas. Úteros-fetos. Olhos vidrados. Faces aterrorizadas. Mudas.
Atônitas. Dizimadas.
Os indiferentes declaram amar a Deus e ao próximo como a si
mesmo. Possuem a suavidade da brisa que embala os corpos fétidos na primavera.
Canto com fúria. Muitas dores eu canto. Sento-me ao lado dos
meus mortos. Ouço seus brados. Tudo está vivo: os mortos e os crimes.
Meu amor.
Livra-me da terra infecunda.
Dê-me um trigal semeado
sem terror.
Homens aprendem a conjugar o verbo odiar desde a mais tenra
idade. Eu odeio. Tu odeias. Ela odeia. Nós odiamos. Vós odiais. Eles
odeiam. De tanto odiar romperam o frágil
limiar entre a civilização e a barbárie.
Pergunta o rabino de uma aldeia nas colinas: o que tanto odeiam meus filhos?
Fuzilado foi em praça pública junto com os cães esfomeados.
Há os que matam por volúpia. Outros por distração e desejo.
Outros por ambição, vingança e poder. Outros por tédio. Outros por perversão e
gozo. Matam os seus semelhantes como se matam bois em matadouros. Com precisão
e resultados.
Meu amor
Dê-me a face envergonhada.
A tua face.
Nas colinas artilheiros bêbados atiram às cegas. Nas ruas
coloridos bondes esbraseados. Seres disformes pelo calor das chamas jogados em
fossas abertas. Opressores escarnecem a carne carbonizada.
Meu amor.
Dê-me o mistério de uma rua alheia .
A preencher a nossa infinita solidão.
Srebrenika .
O Pavor é qual ondas que avançam. E deixa, ao refluir, a memória
amaldiçoada. Oito mil homens exterminados em algumas horas. Poucas.
O povo ultrajado implora
trégua. E os senhores da guerra entornam garrafas de uísques em Genebra
enquanto negociam vidas .
Meu amor,
Dê -me um súbito brilho que possa apagar toda infâmia.
Meu amor.
Emerjo entre correntes
vorazes. À deriva. Entre as sobras de um naufrágio.
Lanço-me em teus braços tortos. Tua elegância vestida em
farrapos.
Meu Amor.
Dê-me asas partidas que se
reconstroem
para um voo que se aproxima.
Bounguenvilles debruçam-se retorcidos nas ruínas do que foi um lar. No pátio balanços
enferrujados. Escorregas azuis cravados por rajadas de tiros. Terra adubada com
o sangue das crianças mortas ao pé dos limoeiros.
Um vulto esmaecido vagueia na escuridão .Trevas. A cabeça entre
mãos. Curvado. Um pai a procura do filho.
Meu amor.
Dê-me delicadezas.
Atravesso o inferno-viva. A febre devora nervos tensos.
Meu amor
Dê- me água límpida. Gotículas translúcidas repousadas em ramagens de árvores fruto em
flor. Orvalhadas.
A biblioteca de Sarajevo está chamas. Um acervo de três milhões
transformado em cinzas.
Odeiam os ahadith do profeta, os califas, os escritos
bizantinos, gregos e latinos, a filosofia, a teologia e a ciência. Odeiam a
arte, a literatura, o alcorão e seus intérpretes, a bíblia e os santos, os
recitadores, as lendas do Egito e as estrelas do Cairo .
As
labaredas engolem a história e a arte. Toneladas de cinzas varrendo as
ruas de Sarajevo.
Meu amor
Dê-me o vento que leva longe as cinzas. E espalha sementes. E
replanta figueiras.
Dê-me o povo que
insultado ri da feridade dos generais.
Vedran Smailović.
Do violoncelo preso às cordas latejantes do luto flui o Adagio
de Albinoni em celebração aos vinte dois
mortos que esperavam pelo pão. Assim é. Assim o será por vinte e dois dias, às
mesmas e sempre dezesseis horas. Um dia para cada morto. Algo move o
violoncelista de Sarajevo. A cabeça presa ao vácuo deixado pelo mercado em
chamas.
Visto meu corpete adornado de destroços. Pequenos andrajos.
Sapatilhas despedaçadas. Danço nos escombros. Rodopio. Descalços. Esfolados
pés.
Pássaros repousam em meu
peito. Teus pássaros.
Meu amor.
Dê-me o Sorriso de
Sarajevo.
Da Mulher de Sarajevo.
Encanto.
Vida que teima nas
entranhas.
Sorvo. Venha.
Meu amor.
Dê-me a tua nudez nesta terra devastada.
Cláudia Reina.