quinta-feira, 17 de abril de 2014

As Dores de Soledade


As Dores de Soledade

Dele ela somente via a nuca. Queria ver o rosto, mas chegara tarde, por causa da demora do ônibus. O salão estava cheio, acomodara-se na última fileira. No ambiente, havia um cheiro de ódio. Maria da Soledade rescendia a amor. Ela estava louca de vontade de abraçar o filho, dar-lhe um beijo e perdoá-lo pelo feito ou não feito, porque pouco entendia dos acontecimentos. Ouvira falar que o filho sumido, agora aparecido, seria julgado por ter cometido um crime. Devia ser um engano e assim pensava com fé.
          Soledade e José tinham duas filhas. Sonhavam com um menino. Quando José Alfredo nasceu, o pai se orgulhou por breve tempo, mas logo substituiu esse sentimento por preocupação. Soledade, entretanto, acreditava ter recebido um chamado de algum lugar ignorado, para que colocasse as suas moléculas, átomos e poros a serviço daquele a que acabara de dar à luz. Os médicos lhe disseram que era pouca a chance de o menino sobreviver, só milagre o salvaria. O marido aconselhou que ela não se envolvesse tanto com o quase morto, para evitar dor maior. Mas a mulher não ouviu ou não quis ouvir e debulhou lágrimas e orações.  E, se milagre foi, não se sabe. Ao cabo de poucos dias, os médicos deram alta ao menino. Soledade levou o "embrulhinho" para casa. Era muito pequeno e frágil. Então, ela lhe deu do peito leite, amor e esperança. O menino vingou – como diziam as vizinhas – contra os prognósticos. Em pouco tempo, em peso, altura e aparência, não se diferenciava dos outros da idade. Porém cresceu esquivo, calado, introvertido e demonstrava, desde muito novo, certa crueldade, traduzida na mania de esmigalhar formigas e outros bichos do quintal.
          Quando José Alfredo fez oito anos, o pai morreu em um acidente do trabalho. Como além do serviço na fábrica José fizesse uns bicos como carpinteiro, a pensão que a família passou a receber era insuficiente para as despesas da modesta casa. Soledade foi trabalhar de faxineira. As filhas cuidavam de sua casa e ela da dos outros. O pouco tempo que lhe sobrava era gasto em mimos com o filho nascido quase morto.
          Talvez pelo seu jeito calado, José Alfredo foi perseguido por uma turma da escola. Eram seis meninos mais velhos. Rasgavam-lhe o uniforme e lhe batiam. Soledade não vencia as costuras de remendos. Passado certo tempo, chegou-lhe a notícia de que um deles havia sido espancado e estava no hospital. Havia quem jurasse ser obra de José Alfredo. Um por um, os agressores foram agredidos. Um deles teve a perna partida em vários lugares a golpes de barra de ferro. Outro ficou internado vários dias no hospital, com o crânio quebrado a pedradas. Havia o que entrara em coma, depois de ter grande parte do corpo queimado. Os demais sérias escoriações. Aqueles que conseguiam falar acusavam José Alfredo.  Esse negou com poucas palavras. Ninguém presenciara. Tudo bem planejado e no momento certo. Soledade preferiu acreditar no filho e o absolveu. O amor ofuscante de Maria a impedia de ver a gravidade da situação. Acarinhou o filho, em vez de repreendê-lo. Tratou-o como se fosse ainda o bebê do embrulhinho.
          Ele estava com dezessete quando sumiu. Nem avisou, nem deixou pista.
          O filho no banco dos réus.
          O homem de roupa preta apregoava, com voz de artista de televisão, as malfeitorias de Caladão, alcunha do meliante no submundo do crime.
          Soledade se negou a acreditar nas filhas quando elas lhe disseram ter vergonha de serem irmãs de Caladão. Não acreditara que o abominado bandido pudesse ser o seu filho. Recusava-se a ver os jornais exibidos por elas, se bem que, uma vez, olhou de relance um desenho em um deles e o homem retratado lembrava José Alfredo.  Havia mais de quinze anos que não o via. Pensou que talvez houvesse morrido, porque, em todo esse tempo, não lhe mandara notícia alguma.
         Ao ver a nuca do réu, teve certeza de quem era. Queria apertá-lo nos braços, homiziá-lo no seu colo, levá-lo consigo para sempre e terminar sua obra de mãe, tornando-o bom e caridoso.
          O homem de roupa preta dizia algumas palavras que ela não entendia. Parecia um linguajar estrangeiro. Outras, porém, ela conhecia muito bem. Ele queria trancafiar o seu filho por anos a fio. Dizia que o julgamento daquele dia, de um homicídio no qual o réu havia matado a amante com quarenta e seis facadas, era apenas um caso, porque a lista de malfeitorias era interminável.
          O homem falava bonito. Era moço e poderia ser seu filho também. Sentiu simpatia por ele e começou a acreditar no que dizia. Isso lhe trouxe aperto no peito e umidade nos seios secados na ânsia de salvar o bebê.
          Outro homem de preto tomou a palavra. Dizia ser o defensor do réu e pedia sua absolvição. Parecia se desculpar por fazer aquilo. Disse coisas que Soledade não entendeu e outras que a revoltaram. O homem estava, na verdade, acusando a ela por falta de atenção e carinho. Falava de um menino abandonado à própria sorte e que delinquira por culpa da família e da sociedade. Merecia absolvição ou atenuação da pena do crime passional que cometera, movido por violenta emoção provocada pela vítima.
          Soledade percebeu a confissão e a desculpa esfarrapada. Sentiu-se derrotada. Todo o esforço para trazer o filho à vida e nela mantê-lo. Agora, era acusada de levá-lo ao crime. O primeiro homem que falara devia ter razão. O filho transformara-se em um monstro desalmado. Ela já não queria beijá-lo nem levá-lo consigo.  Queria dar-lhe a sova não dada ao tempo certo. Relembrou o passado. Percebeu que José Alfredo, agora alcunhado de Caladão, jamais gostara dela e das irmãs. Pareceu-lhe que ele vivera a infância esperando o momento de partir e as usara como se fossem objetos, enquanto delas precisara. Lembrou-se dos bichinhos esmigalhados no quintal.
          O acusador com cara de ator de novela retomou a palavra. Ele pegou um papel e começou a ler o rol dos crimes praticados por Caladão. Os mais torpes eram seguidos de uma descrição detalhada. Assim foi feito no caso em que o réu assassinara aos poucos uma idosa diante do marido, para que ele dissesse onde estaria escondido um dinheiro que não tinha, e depois matara o velho. Também detalhou o caso da menina estuprada e depois morta diante da mãe e ainda o do menino sequestrado de quem o réu cortara dedo a dedo e remetera à família para exigir o resgate, subindo o preço a cada concordância com a remessa de outro dedo. A família conseguiu o dinheiro e entregou a Caladão. No local onde deveria ser encontrado o menino, estava o seu cadáver. As mãos sem dedos. O promotor continuou a narrar os crimes e, a cada detalhe dito pelo acusador, Soledade sentia um nó subir pelo seu corpo. Veio do útero, alcançou o peito, subiu pela traqueia, ultrapassou a faringe e chegou à boca. Ela teve vontade de matar o filho ali mesmo, com suas próprias mãos, pois, se dera a vida àquele ser desprezível, tinha o dever de tirá-la, em benefício de todos. Afinal, se era dela a culpa de tanto pecado, o melhor seria cortar o mal de uma vez.
          O promotor com cara de galã não parava de discorrer sobre as malfeitorias do Caladão. Soledade segurava aquela coisa doida que lhe entupia a garganta. Ela no fundo do auditório só podia ver a nuca do filho-monstro. O amor tanto transformado em ódio. Caladão virou o rosto. Soledade estremeceu. Súbito a garganta não conteve mais o grito dilacerante. Tremeram as luzes, ou isso pareceu acontecer. Ela se levantou e o grito rouco lhe abriu caminho. Não houve quem ousasse lhe barrar passagem.  Ela chegou diante do filho e o grito tornou-se estridente. José Alfredo, o Caladão, encolheu e ficou da estatura de um menino. O grito aumentou e o réu minguou ao tamanho de um bebê. E como o grito não parasse, ele virou um feto. Maria da Soledade o tomou nas mãos, agachou-se, levantou o vestido e, num aborto às avessas, enfiou o filho nas entranhas, correu pelo meio da multidão perplexa e sumiu porta afora.

 (Jairo Vianna Ramos)

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