As Dores de Soledade
Dele ela somente via a nuca.
Queria ver o rosto, mas chegara tarde, por causa da demora do ônibus. O salão
estava cheio, acomodara-se na última fileira. No ambiente, havia um cheiro de
ódio. Maria da Soledade rescendia a amor. Ela estava louca de vontade de
abraçar o filho, dar-lhe um beijo e perdoá-lo pelo feito ou não feito, porque
pouco entendia dos acontecimentos. Ouvira falar que o filho sumido, agora
aparecido, seria julgado por ter cometido um crime. Devia ser um engano e assim
pensava com fé.
Soledade e José tinham duas filhas. Sonhavam com um menino. Quando José
Alfredo nasceu, o pai se orgulhou por breve tempo, mas logo substituiu esse
sentimento por preocupação. Soledade, entretanto, acreditava ter recebido um
chamado de algum lugar ignorado, para que colocasse as suas moléculas, átomos e
poros a serviço daquele a que acabara de dar à luz. Os médicos lhe disseram que
era pouca a chance de o menino sobreviver, só milagre o salvaria. O marido
aconselhou que ela não se envolvesse tanto com o quase morto, para evitar dor
maior. Mas a mulher não ouviu ou não quis ouvir e debulhou lágrimas e
orações. E, se milagre foi, não se sabe. Ao cabo de poucos dias, os
médicos deram alta ao menino. Soledade levou o "embrulhinho" para
casa. Era muito pequeno e frágil. Então, ela lhe deu do peito leite, amor e
esperança. O menino vingou – como diziam as vizinhas – contra os prognósticos.
Em pouco tempo, em peso, altura e aparência, não se diferenciava dos outros da
idade. Porém cresceu esquivo, calado, introvertido e demonstrava, desde muito
novo, certa crueldade, traduzida na mania de esmigalhar formigas e outros
bichos do quintal.
Quando José Alfredo fez oito anos, o pai morreu em um acidente do
trabalho. Como além do serviço na fábrica José fizesse uns bicos como
carpinteiro, a pensão que a família passou a receber era insuficiente para as
despesas da modesta casa. Soledade foi trabalhar de faxineira. As filhas
cuidavam de sua casa e ela da dos outros. O pouco tempo que lhe sobrava era
gasto em mimos com o filho nascido quase morto.
Talvez pelo seu jeito calado, José Alfredo foi perseguido por uma turma
da escola. Eram seis meninos mais velhos. Rasgavam-lhe o uniforme e lhe batiam.
Soledade não vencia as costuras de remendos. Passado certo tempo, chegou-lhe a
notícia de que um deles havia sido espancado e estava no hospital. Havia quem
jurasse ser obra de José Alfredo. Um por um, os agressores foram agredidos. Um
deles teve a perna partida em vários lugares a golpes de barra de ferro. Outro
ficou internado vários dias no hospital, com o crânio quebrado a pedradas.
Havia o que entrara em coma, depois de ter grande parte do corpo queimado. Os
demais sérias escoriações. Aqueles que conseguiam falar acusavam José
Alfredo. Esse negou com poucas palavras. Ninguém presenciara. Tudo bem
planejado e no momento certo. Soledade preferiu acreditar no filho e o
absolveu. O amor ofuscante de Maria a impedia de ver a gravidade da situação.
Acarinhou o filho, em vez de repreendê-lo. Tratou-o como se fosse ainda o bebê
do embrulhinho.
Ele estava com dezessete quando sumiu. Nem avisou, nem deixou pista.
O filho no banco dos réus.
O homem de roupa preta apregoava, com voz de artista de televisão, as
malfeitorias de Caladão, alcunha do meliante no submundo do crime.
Soledade se negou a acreditar nas filhas quando elas lhe disseram ter
vergonha de serem irmãs de Caladão. Não acreditara que o abominado bandido
pudesse ser o seu filho. Recusava-se a ver os jornais exibidos por elas, se bem
que, uma vez, olhou de relance um desenho em um deles e o homem retratado
lembrava José Alfredo. Havia mais de quinze anos que não o via. Pensou
que talvez houvesse morrido, porque, em todo esse tempo, não lhe mandara
notícia alguma.
Ao
ver a nuca do réu, teve certeza de quem era. Queria apertá-lo nos braços,
homiziá-lo no seu colo, levá-lo consigo para sempre e terminar sua obra de mãe,
tornando-o bom e caridoso.
O homem de roupa preta dizia algumas palavras que ela não entendia.
Parecia um linguajar estrangeiro. Outras, porém, ela conhecia muito bem. Ele
queria trancafiar o seu filho por anos a fio. Dizia que o julgamento daquele
dia, de um homicídio no qual o réu havia matado a amante com quarenta e seis
facadas, era apenas um caso, porque a lista de malfeitorias era interminável.
O homem falava bonito. Era moço e poderia ser seu filho também. Sentiu
simpatia por ele e começou a acreditar no que dizia. Isso lhe trouxe aperto no
peito e umidade nos seios secados na ânsia de salvar o bebê.
Outro homem de preto tomou a palavra. Dizia ser o defensor do réu e pedia
sua absolvição. Parecia se desculpar por fazer aquilo. Disse coisas que
Soledade não entendeu e outras que a revoltaram. O homem estava, na verdade,
acusando a ela por falta de atenção e carinho. Falava de um menino abandonado à
própria sorte e que delinquira por culpa da família e da sociedade. Merecia
absolvição ou atenuação da pena do crime passional que cometera, movido por
violenta emoção provocada pela vítima.
Soledade percebeu a confissão e a desculpa esfarrapada. Sentiu-se
derrotada. Todo o esforço para trazer o filho à vida e nela mantê-lo. Agora,
era acusada de levá-lo ao crime. O primeiro homem que falara devia ter razão. O
filho transformara-se em um monstro desalmado. Ela já não queria beijá-lo nem
levá-lo consigo. Queria dar-lhe a sova não dada ao tempo certo. Relembrou
o passado. Percebeu que José Alfredo, agora alcunhado de Caladão, jamais
gostara dela e das irmãs. Pareceu-lhe que ele vivera a infância esperando o
momento de partir e as usara como se fossem objetos, enquanto delas precisara.
Lembrou-se dos bichinhos esmigalhados no quintal.
O acusador com cara de ator de novela retomou a palavra. Ele pegou um
papel e começou a ler o rol dos crimes praticados por Caladão. Os mais torpes
eram seguidos de uma descrição detalhada. Assim foi feito no caso em que o réu
assassinara aos poucos uma idosa diante do marido, para que ele dissesse onde
estaria escondido um dinheiro que não tinha, e depois matara o velho. Também
detalhou o caso da menina estuprada e depois morta diante da mãe e ainda o do
menino sequestrado de quem o réu cortara dedo a dedo e remetera à família para
exigir o resgate, subindo o preço a cada concordância com a remessa de outro
dedo. A família conseguiu o dinheiro e entregou a Caladão. No local onde
deveria ser encontrado o menino, estava o seu cadáver. As mãos sem dedos. O
promotor continuou a narrar os crimes e, a cada detalhe dito pelo acusador, Soledade
sentia um nó subir pelo seu corpo. Veio do útero, alcançou o peito, subiu pela
traqueia, ultrapassou a faringe e chegou à boca. Ela teve vontade de matar o
filho ali mesmo, com suas próprias mãos, pois, se dera a vida àquele ser
desprezível, tinha o dever de tirá-la, em benefício de todos. Afinal, se era
dela a culpa de tanto pecado, o melhor seria cortar o mal de uma vez.
O promotor com cara de galã não parava de discorrer sobre as malfeitorias
do Caladão. Soledade segurava aquela coisa doida que lhe entupia a garganta.
Ela no fundo do auditório só podia ver a nuca do filho-monstro. O amor tanto
transformado em ódio. Caladão virou o rosto. Soledade estremeceu. Súbito a
garganta não conteve mais o grito dilacerante. Tremeram as luzes, ou isso
pareceu acontecer. Ela se levantou e o grito rouco lhe abriu caminho. Não houve
quem ousasse lhe barrar passagem. Ela chegou diante do filho e o grito
tornou-se estridente. José Alfredo, o Caladão, encolheu e ficou da estatura de
um menino. O grito aumentou e o réu minguou ao tamanho de um bebê. E como o
grito não parasse, ele virou um feto. Maria da Soledade o tomou nas mãos,
agachou-se, levantou o vestido e, num aborto às avessas, enfiou o filho nas
entranhas, correu pelo meio da multidão perplexa e sumiu porta afora.
(Jairo Vianna Ramos)
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