terça-feira, 29 de abril de 2014

Cenas do Mundo- O Sorriso da Mulher de Sarajevo- 22

                       Cenas do Mundo- O Sorriso da Mulher de Sarajevo- 22


                                ( Foto: Cláudia Reina- Sarajevo)

O Sorriso  da Mulher de  Sarajevo - 22

Corpos em busca de abrigos. Andarilhos sem rumo. Trilhas de destroços. O declínio  sombreia ruínas.
Meu amor.
Dê-me as sombras dos teus olhos turvos. Olhos de bruma.   
Ataques aéreos. Em simetria. Bombas ritmicamente lançadas sobre a cidade cercada. A regularidade fria dos relógios  arruína construções  seculares.  
A beleza agride a virilidade dúbia das feras. A impotência revolvida em cólera fortificada tal qual castelos medievos. 
Meu amor.
Dê-me pássaros a povoar túmulos lodosos.
Quantos e quantas  Sumayyah, Marijas, Fazels, Andrijas, Khadijas, Vanovics, Habibs, Lukovics, Fouads e  Kostinas  explodem no ar.   
Quanta infância e juventude entupidas em valeiros. E sempre o mesmo som a ressoar das bombas e dos fuzis.
O  nevoeiro  cobre a bicicleta azul do poeta  morto.
Afogam-se mães em rios de sangue talhado. Ontem ainda fotografias enfeitavam as paredes nuas das casas.
O peso da solidão materna. Pedra fria. Cova rasa. Órfãos da humanidade.
Sobre túmulos planto lírios.  
Meu amor.
Dê-me as mãos enegrecidas das cinzas dos filhos  mortos. As tuas mãos.
Livra-me  das palavras malditas lançadas  nos sepulcros.
Dê-me amanheceres  prateados sobre uma Saravejo encarcerada.
Meu amor. 
Dê-me o teu longo túnel de desespero. 
Ofereço-lhe a luz opaca de uma lâmpada vacilante que se adianta para iluminar a noite invernal. 
Ofereço-lhe restos ornados por rosas que cultivo. Vermelhas.
Omarska, Keraterm e Trnopolje.
Campos secos de extermínios. A terra é untada com os corpos de vinte e duas mil mulheres retalhadas com lâminas afiadas. Queimadas. Violentadas. Úteros-fetos. Olhos vidrados. Faces aterrorizadas. Mudas. Atônitas. Dizimadas.
Os indiferentes declaram amar a Deus e ao próximo como a si mesmo. Possuem a suavidade da brisa que embala os corpos fétidos na primavera.
Canto com fúria. Muitas dores eu canto. Sento-me ao lado dos meus mortos. Ouço seus brados. Tudo está vivo: os mortos e os crimes. 
Meu amor.
Livra-me da terra infecunda.   
Dê-me um trigal  semeado sem  terror.  
Homens aprendem a conjugar o verbo odiar desde a mais tenra idade. Eu odeio. Tu odeias. Ela odeia. Nós odiamos. Vós odiais. Eles odeiam.  De tanto odiar romperam o frágil limiar entre a civilização e a barbárie.
Pergunta  o rabino  de uma aldeia nas  colinas: o que tanto odeiam meus filhos? Fuzilado foi em praça pública junto com os cães esfomeados.  
Há os que matam por volúpia. Outros por distração e desejo. Outros por ambição, vingança e poder. Outros por tédio. Outros por perversão e gozo. Matam os seus semelhantes como se matam bois em matadouros. Com precisão e resultados.  
Meu amor
Dê-me a face envergonhada. 
A tua face.
Nas colinas artilheiros bêbados atiram às cegas. Nas ruas coloridos bondes esbraseados. Seres disformes pelo calor das chamas jogados em fossas abertas. Opressores escarnecem a carne carbonizada.    
Meu amor.
Dê-me o mistério de uma rua alheia .
A preencher a nossa infinita solidão.
Srebrenika . 
O Pavor é qual ondas que avançam. E deixa, ao refluir, a memória amaldiçoada. Oito mil homens exterminados em algumas horas. Poucas. 
O povo ultrajado implora  trégua. E os senhores da guerra entornam garrafas de uísques em Genebra enquanto negociam vidas .
Meu  amor,
Dê -me um súbito brilho que possa apagar toda infâmia.
Meu amor.
Emerjo  entre correntes vorazes.  À deriva.  Entre as sobras de um naufrágio.   
Lanço-me em teus braços tortos. Tua elegância vestida em farrapos.
Meu Amor.  
Dê-me asas partidas que se  reconstroem
para um voo que se aproxima. 
Bounguenvilles debruçam-se retorcidos nas  ruínas do que foi um lar. No pátio balanços enferrujados. Escorregas azuis cravados por rajadas de tiros. Terra adubada com o sangue  das crianças mortas  ao pé dos limoeiros.
Um vulto esmaecido vagueia na escuridão .Trevas. A cabeça entre mãos. Curvado. Um pai a procura do filho.
Meu amor.
Dê-me delicadezas.
Atravesso o inferno-viva. A febre devora nervos tensos.
Meu amor
Dê- me água límpida. Gotículas translúcidas  repousadas em ramagens de árvores fruto em flor. Orvalhadas.    
A biblioteca de Sarajevo está chamas. Um acervo de três milhões transformado em cinzas.
Odeiam os ahadith do profeta, os califas, os escritos bizantinos, gregos e latinos, a filosofia, a teologia e a ciência. Odeiam a arte, a literatura, o alcorão e seus intérpretes, a bíblia e os santos, os recitadores, as lendas do Egito e as estrelas do Cairo .  
As  labaredas engolem a história e a arte. Toneladas de cinzas varrendo as ruas de Sarajevo.
Meu amor
Dê-me o vento que leva longe as cinzas. E espalha sementes. E replanta figueiras.
Dê-me o   povo que insultado ri da feridade dos generais.
Vedran Smailović.
Do violoncelo preso às cordas latejantes do luto flui o Adagio de Albinoni  em celebração aos vinte dois mortos que esperavam pelo pão. Assim é. Assim o será por vinte e dois dias, às mesmas e sempre dezesseis horas. Um dia para cada morto. Algo move o violoncelista de Sarajevo. A cabeça presa ao vácuo deixado pelo mercado em chamas.
Visto meu corpete adornado de destroços. Pequenos andrajos. Sapatilhas despedaçadas. Danço nos escombros. Rodopio. Descalços. Esfolados pés. 
Pássaros repousam em meu  peito. Teus pássaros.
Meu amor.
Dê-me o  Sorriso de Sarajevo.
Da Mulher de Sarajevo.
Encanto.
Vida que teima  nas entranhas.
Sorvo. Venha.
Meu amor.
Dê-me a tua nudez nesta terra devastada.
 
Cláudia Reina.




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