sábado, 18 de novembro de 2023

Retrato


 



Cecília Meireles


Eu não tinha este rosto de hoje,

assim calmo, assim triste, assim magro,

nem estes olhos tão vazios,

nem o lábio amargo.



Eu não tinha estas mãos sem força,

tão paradas e frias e mortas;

eu não tinha este coração

que nem se mostra.



Eu não dei por esta mudança,

tão simples, tão certa, tão fácil:

— Em que espelho ficou perdida

a minha face?

sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Julgando…




Rodolfo Pamplona Filho 


Quem julga quem julga

não sabe julgar

a solidão de quem reflete

sobre o que compromete

o fato do passado,

o reflexo no presente

e a potencialidade para o futuro.


Se não houver razão, morreria de inanição,

Se não houver poesia, enlouqueceria

Se não houver tensão, não haveria tesão

Se não houver paz, seria caro demais…


Conhecer a vida

Compreender as razões

Determinar destinos

é tarefa que exige responsabilidade,

mas decidir de verdade

importa na consciência

de nunca saber a essência

do que ocorreu na realidade.


 


Salvador, 22 de outubro de 2023, papeando com Chico Gomes.

quinta-feira, 16 de novembro de 2023

Balada das dez bailarinas do cassino

 



Cecília Meireles



 


Dez bailarinas deslizam

por um chão de espelho.

Têm corpos egípcios com placas douradas,

pálpebras azuis e dedos vermelhos.

Levantam véus brancos, de ingênuos aromas,

e dobram amarelos joelhos.



Andam as dez bailarinas

sem voz, em redor das mesas.

Há mãos sobre facas, dentes sobre flores

e com os charutos toldam as luzes acesas.

Entre a música e a dança escorre

uma sedosa escada de vileza.



As dez bailarinas avançam

como gafanhotos perdidos.

Avançam, recuam, na sala compacta,

empurrando olhares e arranhando o ruído.

Tão nuas se sentem que já vão cobertas

de imaginários, chorosos vestidos.



A dez bailarinas escondem

nos cílios verdes as pupilas.

Em seus quadris fosforescentes,

passa uma faixa de morte tranqüila.

Como quem leva para a terra um filho morto,

levam seu próprio corpo, que baila e cintila.



Os homens gordos olham com um tédio enorme

as dez bailarinas tão frias.

Pobres serpentes sem luxúria,

que são crianças, durante o dia.

Dez anjos anêmicos, de axilas profundas,

embalsamados de melancolia.



Vão perpassando como dez múmias,

as bailarinas fatigadas.

Ramo de nardos inclinando flores

azuis, brancas, verdes, douradas.

Dez mães chorariam, se vissem

as bailarinas de mãos dadas.

 


(in Mar Absoluto e outros poemas: Retrato Natural. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1983.)


quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Primeiro Contato





Rodolfo Pamplona Filho


A primeira vez

O primeiro olhar

A primeira palavra

A primeira conversa

O primeiro encantamento

O primeiro dia

do resto de nossas vidas...




Gramado, 18 de outubro de 2012, descobrindo uma nova amizade.

terça-feira, 14 de novembro de 2023

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados

 



Álvaro de Campos


 

Desfraldando ao conjunto fictício dos céus estrelados 

O esplendor do sentido nenhum da vida... 

Toquem num arraial a marcha fúnebre minha! 

Quero cessar sem conseqüências... 

Quero ir para a morte como para uma festa ao crepúsculo.


segunda-feira, 13 de novembro de 2023

domingo, 12 de novembro de 2023

Depus a Máscara

 



Álvaro de Campos

 


 

 

    Depus a máscara e vi-me ao espelho. — 

    Era a criança de há quantos anos. 

    Não tinha mudado nada... 

    É essa a vantagem de saber tirar a máscara. 

    É-se sempre a criança, 

    O passado que foi 

    A criança. 

    Depus a máscara, e tornei a pô-la. 

    Assim é melhor, 

    Assim sem a máscara. 

    E volto à personalidade como a um términus de linha.