sábado, 21 de outubro de 2023

Liberdade

 



Fernando Pessoa

 

 

Ai que prazer 

Não cumprir um dever, 

Ter um livro para ler 

E não fazer ! 

Ler é maçada, 

Estudar é nada. 

Sol doira 

Sem literatura 

O rio corre, bem ou mal, 

Sem edição original. 

E a brisa, essa, 

De tão naturalmente matinal, 

Como o tempo não tem pressa... 

Livros são papéis pintados com tinta. 

Estudar é uma coisa em que está indistinta 

A distinção entre nada e coisa nenhuma. 


Quanto é melhor, quanto há bruma, 

Esperar por D.Sebastião,  

Quer venha ou não ! 


Grande é a poesia, a bondade e as danças... 

Mas o melhor do mundo são as crianças, 

Flores, música, o luar, e o sol, que peca 

Só quando, em vez de criar, seca. 


Mais que isto 

É Jesus Cristo,  

Que não sabia nada de finanças 

Nem consta que tivesse biblioteca... 

sexta-feira, 20 de outubro de 2023

Escravas Sagradas de Korinthio

 





No encontro entre o Egeu e o Jônico

e de dois portos importantes,

encontra-se a cidade

que não conhecia o amor


No culto à Afrodite,

entregam-se mais do que primícias,

pois é o próprio corpo o objeto

do contato, do negócio e do prazer,


proporcionando conforto e alento

a quem vem de muito longe

e não sente há muito mais


o contato com a pele aveludada

em que o sentimento é nada,

mas a entrega e satisfação totais.


Na estrada de Korinthio para Atenas, 29 de setembro de 2012.

quinta-feira, 19 de outubro de 2023

Leves véus velam, nuvens vãs, a lua




 Fernando Pessoa


 

LEVES VÉUS velam, nuvens vãs, a lua.

Crepúsculo na noite..., e é triste ver,

Em vez da límpida amplitude nua

Do céu, a noite e o céu a escurecer.

A noite é úmida de conhecer,

Sem que umidade de água seja sua.

[...]


quarta-feira, 18 de outubro de 2023

Saudade




Parece doença...

Parece tristeza...

Parece dor no peito...

Parece desespero...

Parece depressão,

mas é só saudade...


Gramado, 18 de outubro de 2012.

terça-feira, 17 de outubro de 2023

Leve no cimo das ervas

 



Fernando Pessoa


 

Leve no cimo das ervas

O dedo do vento roça...

Elas dizem-me que sim...

Mas eu já não sei de mim

Nem do que queira ou que possa.

E o alto frio das ervas

Fica no ar a tremer...

Parece que me enganaram

E que os ventos me levaram

O com que me convencer.


Mas no relvado das ervas

Nem bole agora uma só.

Porque pus eu uma esperança

Naquela inútil mudança

De que nada ali ficou?


Não: o sossego das ervas

Não é o de há pouco já.

Que inda a lembrança do vento

Me as move no pensamento

E eu tenho porque não há.


segunda-feira, 16 de outubro de 2023

Necessidade de Reclamar




Há indivíduos que

mal comem feijão com arroz

e querem questionar

a qualidade do champagne...

Pessoas que não sabem distinguir

um idioma de um dialeto,

um prato de um lanche

ou uma casa de um lar

e querem posar para a sociedade

como sacerdotes do culto,

vestais do templo

ou oráculos da verdade...

Pobres diabos,

eles não sabem

o que fazem, pois

sua vontade de viver

se confunde com

sua necessidade de reclamar...


Pamplona/Espanha, 03 de outubro de 2012.


domingo, 15 de outubro de 2023

Leve, breve, suave,




 Fernando Pessoa


                             

                        

Leve, breve, suave,

Um canto de ave

Sobe no ar com que principia

O dia.

Escuto, e passou...

Parece que foi só porque escutei

Que parou.

Nunca, nunca em nada,

Raie a madrugada,

Ou 'splenda o dia, ou doure no declive,

Tive

Prazer a durar

Mais do que o nada, a perda, antes de eu o ir

Gozar.