sábado, 2 de dezembro de 2023

Modinha do empregado de banco



Murilo Mendes



Eu sou triste como um prático de farmácia,

sou quase tão triste como um homem que usa costeletas.

Passo o dia inteiro pensando nuns carinhos de mulher

mas só ouço o tectec das máquinas de escrever.


Lá fora chove e a estátua de Floriano fica linda.

Quantas meninas pela vida afora!

E eu alinhando no papel as fortunas dos outros.

Se eu tivesse estes contos punha a andar

a roda da imaginação nos caminhos do mundo.

E os fregueses do Banco

que não fazem nada com estes contos!

Chocam outros contos para não fazerem nada com eles.


Também se o diretor tivesse a minha imaginação

o Banco já não existiria mais

e eu estaria noutro lugar.


sexta-feira, 1 de dezembro de 2023

Sempre estarei aqui...

 


Rodolfo Pamplona Filho


Sempre estarei aqui...

mesmo que nosso futuro seja incerto,

talvez sem ver a chuva cair

ou sem lugar para dormir


Sempre estarei aqui...

mesmo quando tivermos que fugir

e esperar que a vida

possa novamente nos reunir


Sempre estarei aqui...

mesmo que os olhos nunca mais se cruzem

que nossos lábios não se juntem

e que a vida trate de cumprir

o inevitável momento do partir.


Sempre estarei aqui...

mesmo que não receba o seu OK

mesmo que o mundo mude sua lei

mesmo que o destino nos afaste de uma vez...


Sempre estarei aqui...

mesmo quando não haja pôr-do-sol

mesmo quando não vejamos o amanhecer

mesmo quando o mundo me tomar você...


Sempre estarei aqui...

ainda que tudo conspire

para que a gente se separe,

meu amor não quer que acabe...


Sempre estarei aqui...

em toda e qualquer ocasião,

em que possa ter a sua atenção

para me entregar na mais louca sensação...


Sempre estarei aqui...

mesmo que você deixe de me amar...

mesmo que você nunca mais queira me ver...

eu nunca descumprirei a promessa

de viver eternamente para seu prazer.


Salvador, 10 de outubro de 2010.

quinta-feira, 30 de novembro de 2023

Pré-história




Murilo Mendes



Mamãe vestida de rendas

Tocava piano no caos.

Uma noite abriu as asas

Cansada de tanto som,

Equilibrou-se no azul,

De tonta não mais olhou

Para mim, para ninguém!

Cai no álbum de retratos.

 


quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Sozinho na Multidão




Rodolfo Pamplona Filho


A pior solidão é

ficar sozinho na multidão,

esperando em pé

um pouco de atenção

de quem compartilha a fé

ou a promessa do coração.


Não sei se é trágico

ou simplesmente irônico,

mas é quase mágico,

diria icônico,

quando sua presença é reclamada,

mas, na verdade, ignorada...


Um dia, eu gritarei

e ouça quem quiser.

Direi tudo que sei

sobre a tristeza que vier:

não há dor maior ou lama

que ser ignorado por quem se ama.


Salvador, 06 de outubro de 2010.

terça-feira, 28 de novembro de 2023

Canção do Exílio

 



Murilo Mendes


Minha terra tem macieiras da Califórnia

onde cantam gaturamos de Veneza.

Os poetas da minha terra

são pretos que vivem em torres de ametista,

os sargentos do exército são monistas, cubistas,

os filósofos são polacos vendendo a prestações.

A gente não pode dormir

com os oradores e os pernilongos.

Os sururus em família têm por testemunha a Gioconda.

Eu morro sufocado

em terra estrangeira.

Nossas flores são mais bonitas

nossas frutas mais gostosas

mas custam cem mil réis a dúzia.

 

Ai quem me dera chupar uma carambola de verdade

e ouvir um sabiá com certidão de idade!



In: MENDES, Murilo. Poesias, 1925/1955. Rio de Janeiro: J. Olympio, 1959

segunda-feira, 27 de novembro de 2023

Nudez



Rodolfo Pamplona Filho


Sabe o que descobri?

Você é o único que

consegue me enxergar...

O amor verdadeiro remove as

membranas que fecham os olhos

e apenas você...

consegue me ver nua...

e que nada mais pode me quebrar...


E me viu nua...

sem tirar uma peça sequer de roupa...

E me viu nua...

sem expor parte alguma de meu corpo...

E me viu nua...

no dia em que olhou em meus olhos...

e viu além de qualquer casca...

E me viu nua...

no dia em que conheceu minha alma

e soube exatamente quem eu era...

e permiti tão íntima ligação

por não carecer de resistência...

por não precisar mais me esconder...

por acreditar em nós...


E eu descubro em você

o que pensei

somente existir em sonhos...

mas sonhos somente são possíveis

se estamos vivos...

sonhos somente existem

se há vida e desejo...

sonhos somente se realizam

na nudez da alma...


São Paulo, 07 de outubro de 2010.

domingo, 26 de novembro de 2023

4o. Motivo da rosa

 



Cecília Meireles



Não te aflijas com a pétala que voa:

também é ser, deixar de ser assim.


Rosas verá, só de cinzas franzida,

mortas, intactas pelo teu jardim.


Eu deixo aroma até nos meus espinhos

ao longe, o vento vai falando de mim.


E por perder-me é que vão me lembrando,

por desfolhar-me é que não tenho fim.