sábado, 20 de maio de 2023

Máquina de fazer gorgeio

 



Eu já te disse

ele é um passarinho lento

toda manhã em nossa janela,

não lhe preste qualquer atenção,

para não criar nenhuma dependência,

pois um dia ele se acabará


como tudo nesta cidade se consome,

sobretudo, quando se sabe,

não é um pássaro,

mas um brinquedo de corda,

proferindo-se a senha,

um estranho gorjeio

sai do mecanismo

querendo comunicar-se,

toda a vez que se vira a manivela.


(Pantomimas e Animação, 1989)


 -J. B. Sayeg

sexta-feira, 19 de maio de 2023

Momentos Refletidos...

 



Rodolfo Pamplona Filho


Ela escreve... na multidão!


um trecho de crônica, uma canção


um testamento, uma confissão


Isso não importa,


e sim que


Ela escreve... na multidão!


um conto, um verso ou um recado


talvez uma carta para o namorado


Isso não importa,


e sim que


Ela escreve... na multidão!


um bilhete, um sonho, uma imagem


um desejo escondido, uma mensagem


Isso não importa,


e sim que


Ela escreve... na multidão!


uma prece, um poema ou um recado


quem sabe um segredo há muito guardado


Isso não importa,


e sim que


Ela escreve... na multidão!


 


Tomo cuidado para não perturbá-la


e, à distância, fico a amá-la,


mas...


Isso não importa


e sim que


Ela escreve... na multidão!


 


(22.01.92)

quinta-feira, 18 de maio de 2023

Olhos de um melro

 



Os olhos mecânicos do melro


eram as únicas coisas que se moviam


na sala. O quadro de Paul Klee desenhava


movimentos de um anjo,


eram movimentos eternos, insatisfatórios


porque não eram efêmeros resolúveis


numa fração de segundo. Os olhos porém


eram ágeis, falavam, escutavam, eram olhos


indagadores. Eu mesmo me imobilizei apavorado


perante aqueles movimentos rápidos e impacientes.




Sentei-me na cadeira de grande espaldar


defronte à escrivaninha. Dobrei a página,


deixando o marcador indicando-me a leitura


interrompida. Os olhos se detiveram,


por um instante. A seguir, desesperadamente


recomeçaram seus inteligentes movimentos.






 (Pantomimas e Animação, 1989)


 -J. B. Sayeg

quarta-feira, 17 de maio de 2023

Ímpeto da Preservação da Individualidade


 


Rodolfo Pamplona Filho



Na vida,


carreira


ou vocação…


Em tudo


que se exige


um Não


 


Eu e meu pai


Eu e meu filho


O Mestre


e o discípulo


 


Freud e Jung


Husserl e Heidegger


Adorno e


Enzensberger


 


Junto da sombra


de uma grande árvore ,


uma nova árvore


não pode crescer


 


A força gravitacional


de uma estrela


atrai a ponto


de absorver


 


É preciso constituir-se,


crescer


Tornar-se Estrêla.


Sol,


Árvore


E novo ser


 


Natal, 19 de maio de 2023.


terça-feira, 16 de maio de 2023

No tempo do forte verde

 



Na sala de jantar


um pouco acima


da cristaleira


o capacete da revolução.


E bem ao lado da terrina


de louça clara adornada


com frutos levemente esmaltados


o pente de balas de fuzil


espetava o dourado ocre do metal.


Foi quando olhei para a rua


e uma bandeira inflava levemente


ao ruflar de longínquos tambores.


Outra vez olhei para o interior


onde as mulheres costuravam.


Pude constatar que o verde


realmente era uma cor


muito forte.




 


 (Cavalos ao Sol, 1982)




 -J. B. Sayeg


segunda-feira, 15 de maio de 2023

Precisão

 



Rodolfo Pamplona Filho e Sebastião Marques Neto


 


Cada um dá o que o tem


E eu só tenho amor pra dar


Na poesia não há precisão


Só a razão precisa


 


Cada um cala a sua dor


E eu não tenho mais o que chorar


Sem poesia não há solução


Leva essa mágoa nas ondas


Salga a lua e o mar


 


Cada um ora pelo que crê


e eu só creio que vale amar


Na oração não há precisão


Só a alma precisa


 


Cada um exorta a sua dor


E eu não tenho mais o que clamar


Sem poesia não há solução


Leva essa mágoa nas ondas


Salga a lua e o mar


 


Cada um chora pelo que vê


e eu só vejo quem quero amar


No desejo não há precisão


Só o coração precisa


 


Cada um consola a sua dor


E eu não tenho mais o que esperar


Sem poesia não há solução


Leva essa mágoa nas ondas


Salga a lua e o mar


 


No vôo de Salvador para Natal, em 18 de maio de 2023.

domingo, 14 de maio de 2023

Romance forense: O amor em segredo de Justiça

 



Caso eu a tenha ofendido


Com a inépcia do pedido,


Rogo pelo amor de Deus:


Se me faltou algum tato,


Prenda-me por desacato,


Mas prenda nos braços seus"


Prontamente, a magistrada teria despachado à mão, numa folha sem timbre, aposta dentro de um envelope de insinuante cor rosa, mandado entregar no escritório do advogado.


"Em toda a minha carreira,


Como juíza de direito,


Nunca vi tanta besteira,


Nem tamanho desrespeito.


Minha conduta moral


É lei que não se revoga


Nem com sustentação oral


Debaixo da minha toga.


Por isso, ilustre advogado,


Seu pedido tresloucado


Indefiro nesta liça.


Depois, com a noite em curso,


Fora do expediente,


Eu aguardo o seu recurso.


E que se faça presente,


Mas em segredo de Justiça".




Autor Desconhecido